Podia
Podia falar na vertigem das manhãs
No ocre e cinzento da paisagem nos olhos
Podia falar de todas as ilhas perdidas
Podia falar do não voltar e de alguns desgostos por trás
Preparando outros maiores
Ou talvez não
Podia falar das agulhas que espetam no dia
As veias vermelhas e cansadas
Podia falar das ligaduras com que vou cozendo
Tempos de desconcerto
Arrefecimentos de Agosto
Podia falar dos pés p’ra cima
E das bengalas obedientes
Que suportam apenas um corpo
Podia falar das almofadas e lençóis
Nem sei se de linho
Em linha com os dias
Podia falar da vontade de dormir
Um sono mais justo
De um acordar mais esperto
Do desagradável espanto dos noticiários
Que não vejo
Podia falar e falo
De um equilíbrio outro
Convocado nas andas de estar aqui
Parado
Mas não.
O que penso agora, profunda e sentidamente
Com a inerente saudade do facto consumado
É naquela carreira para a infância
Traçada em campos de bola algures
Com balizas feitas das pedras que encontrava
Ou de mochilas da escola
Essa carreira não passa por aqui
Mudei-lhe o trajecto
num pontapé sem sorte
Não queria
Não quero
Não pode ser assim tão claro
E disso falarei
Um dia.
Rui A.
Publicado em 8 de Agosto de 2012