Pois vou-te contar
Olha pois vou-te contar um pouco da minha história
(alguns episódios apenas)
Poucos muito poucos a ouviram
E isso nunca me importou assim tanto,
Para lá do que me importava e muito
Mas ainda assim, daqui vai
Era um rapaz alto, bem mais que um metro e oitenta
(o que à época era um caso sério)
Nem por isso dado aos estudos,
Melhor dizendo nada dado aos estudos, e quando digo nada digo nada
(a cor mulata não ajudava ao disfarce, nas engatatotorias da então escola)
Experimentei bastante o Atlético, era promissor atleta
Quanto mais não fosse, dada a altura,
Mas sei que tinha jeito e sabiam
Num jogo em que fui expulso, por superar limites nas faltas,
Saí de campo em braços, na maior das calmas.
Eu era o novo americano do bairro
Fiz os melhores três pontos (ainda não existiam)
Da minha vida e dos outros
Qualquer coisa de espectacular, digamos.
Acumulei faltas de comparência às aulas
Com a colecção completa de Miguel Torga
Com que impressionava o meu amigo
E uns dez LP’s do David Bowie, no mínimo
Para impressionar a menina da discoteca
Foram tempos verdes e com alguns pedaços bonitos
Nem todos, obviamente, é sempre assim
Não podem ser todos ou não os reconhecíamos
Preocupava-me com o tamanho da pila
Sendo eu tão grande
Coisas e preocupações infantes
Pensava que tinha tempo
Claro que fui assassinado à porta do Jamaica
Lembro que ia ver os Rolling Stones
E claro que o jornal O Crime
Anunciou que
Era eu um bom rapaz, razoavelmente quarismático
Matado por alguns negros
Que eram bem mais brancos que eu.
Dirás que sou descomunal
Mas essa, meu amigo,
É a tua percepção das coisas
À distância, passados anos, nada me importa mais
Que rever-te amigo
Onde quer que estejas
E que estejas bem
Cá te espero, grande abraço
Carlos Frederico Valente Torres
Publicado em 17 de Dezembro de 2012