Acerca de dona Eulália
Dona Eulália pensava pouco
de si própria e não esperava
ter um dia seu nome e seus destinos
em qualquer espécie de linha
Dona Eulália sonhou mais ou menos muito nada
tirando o dia claro em que nasceu o seu Francisco
que viria a ser mais tarde famoso no café do Borja
por episódios vários que dona Eulália nem sempre
compreendeu. Tanta sede no calor
e no Inverno, e tão logo a seguir à infância
era algo que sempre a espantava mesmo
sabendo metade das histórias
mesmo sabendo que era essa a moda praticada pelos que ficaram
na aldeia e pelos que dela fugiram para
Luxemburgos a pratos e Alemanhas e Franças
servis, destinos vários coroados na ostentação possível
dos cabazes da festa
nas festas de agosto
Mas para dona Eulália o dia em que nasceu o futuro
energúmeno e ex-Francisquinho
era um dia cheio de hipóteses
- ao meu filho nunca faltará nada
há-de ter comida, bons sapatos e escola
emprego,boa casa, família larga e até
automóvel
Dona Eulália lera pouco, de facto nunca se interessou
por ciências sociais, estruturalistas e outras formas
de dizer a tragédia
E a isso deveu em parte dona Eulália
(para além de um amor daqueles dias que tudo justifica e merece),
do alto de um corpo pouco dado a curvas,
os sonhos lisos e rectos, aqueles sonhos tão rentes,
em que se sentiu próxima e parte
de um outro continente e bairro.
Ninguém lhe levará a mal, dona Eulália é figura maioritária
entre os nascidos da terra.
E para além do muito a aprender na vida
com as vidas que pouco ensinam ou acrescentam
convém lembrar o significado do nome de dona Eulália
“Bem-falante” - que é o que podemos dizer também
de quem diz com acerto e sem palavras demasiadas
o que foi ou é a vida.
Isto para quem tem pela precisão especial apreço, cruel ou não
Por isso é tão fácil falar da simpática dona Eulália,
que nunca fez mal a ninguém.
Por isso falei já de outra Eulália igualmente concisa, a tal que foi casada
com um filatelista dado a moedas.
Bizarrias.
Dona Eulália nunca lerá esta carta, e nunca lhe fez ou fará falta.
Morreu há cerca de cinco anos na planície
com o filho sobrealimentado a minis. E lá continua
(agora mais lento, mas sempre pertinaz, vocação precoce
e sucedida)
É mais fácil falar de dona Eulália, e além disso
teve um funeral bastante normal,
como o de quase todos nós.
Rui A.
Publicado em 4 de Março de 2013