Como uma flor de plástico na montra de um talho
(oferenda muito apreciada de dador anonimizado)
Não te escrevi no outro dia, Timur,
nem ontem sequer,
quando me lembro de ter deixado o copo a escorregar até ao fim,
sem respirar, sempre a procurar as tuas pernas por debaixo da mesa.
Na verdade, fui adiando,
vou sempre dilatando a espera, por me sentir, de repente, imortal,
ou talvez por cobardia, como Kafka, encolhido numa cadeira de madeira
com a sua mantinha com cheiro a chichi de gato
sobre os joelhos gelados.
Mas hoje, a garrafa que atiraste ao mar,
atingiu-me no olho esquerdo (não deve ter sequer tocado a água).
É o dia em que recebo o subsídio de férias,
um dia em branco à minha espera.
Vou cuidar um pouco de mim, acho,
vou pintar o cabelo, cortar as unhas,
passar a tarde num desses cafés da Baixa, onde ninguém me conhece,
mas há cada vez mais gente que me cumprimenta,
sobretudo jovens funcionários de banco, gente que fala do euromilhões,
do tempo e do Benfica.
Fiquei com o sabor a ti e com vontade de mais.
Sinto cada vez mais a necessidade de ir embora,
tenho saudades do karting de Almeirim,
desses enchidos e do chucrute em Berlim,
tenho até saudades de Buenos Aires,
onde ainda não fomos.
Queria também dizer-te que não vale a pena que fiques assim amargurado
Por estes desencontros.
Sendo nós estes nómadas que somos, isso é inevitável,
logo, não é digno nem de alegria nem de tristeza.
É apenas uma maneira distante de ver o demasiado perto.
Há, certamente, deformações da retina
que não se podem corrigir na Multiópticas,
como este estrabismo improvável que me permite
ver-te passar ao longe,
espontâneo e singular como um derrame ocular.
Vou agora pôr um pedaço de carne crua no olho aleijado
E mando-te, com força e sem pudor, este abraço.
Golgona Anghel
Publicado em 6 de Julho de 2013