Este mar me detém, mas nunca saberei quem desvaneceu a escrita aqui abandonada num desígnio antiquíssimo: as pegadas tenras das gaivotas, folhas tranqüilas a denunciar os ramos adejantes que copiam a espuma Escrevo gaivotas , simplifico: acaso estes signos sejam também de alcatrazes, alciões: mas ao soletrar o seu ditado errante decifro mensagens num livro tão precário que a brisa o arrebata. Isso não importaria: eu iria olhando no chão o negativo de meus pés, nada teria para o comparar, prosseguiria. Até onde? Prosseguiria sempre: jamais findam as praias, nem quando a luz se rende. Assim, terei de retornar ao poema: nomear o desconhecido, reconstituir no mineral ou na face que o tempo feriu para delir depois a pressão de umas pulsações, de uma cabeça vencida pelo cansaço[ou o desejo. E recomeçar é sangrento se o ímpeto se finca apenas em palavras, em matéria que não se possui. As palavras nunca podem guardar-se; quando poupadas, decompõem-se na sua própria usura. Há que procurar o texto alado: rente às algas exaustas, sob a turquesa estilhaçada que neva e tumultua, iremos desvendá-lo. Sem um indício? Uma cor, um odor vão conduzir-nos: os que no azebre de um rosto em nós sepulto distanciam as feições do interior de onde despontam, como o verbo se corrompe desde que as sílabas se juntam e ameaçam: os sinais que gravamos propõem uma totalidade até que uns olhos neles se jogam e os afastam do sangue de onde nascem. Esse é o exemplo das asas: lassas, arqueiam-se suplicando o sol, rasam a areia, prolongam a nervura das pegadas, enfunam-se num arrepio inverniço - prenúncio de rajadas e marés - e disparam para incendiar-se onde a sombra as não humilhe. Recomeço, pois. Como recuperar o início? os cirros como lanhos veementes a exaurir as tardes? os areais rebeldes aos barcos, a expulsar o seu domínio? Onde os dias a transbordar de conchas cálidas? Estou aqui e é evidente que a ausência de sinais sobre este chão, estas mãos, esta fronte que não sustenho porque estão em outro lugar numa hora longínqua é a única legenda que me pode ser dada. Só resta transcrevê-la e extingui-la sem a ter compreendido. Pousam estas letras como aves: desconhecem a morte, para elas todo o espaço é este azul e o tempo o momento em que seu vulto avança e é peso a impor um sentido que será denunciado apenas a quem a seguir até à própria consumação: a salsugem, o vento ávido de cumprir-se na sua fuga ao silêncio, as vagas ou o esquecimento indiferentes ao destruir o que ignoram, mesmo se a espuma é no meio-dia um peito em floração e na noite a alva naufragada prestes a cobrir o corpo desejado. José Bento