Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde para respirar o ar fresco que vinha do oceano. O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano. Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro, tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas, divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota. Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província, em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa. Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse, só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso. Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre? Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres. Joseph Brodsky, trad. Carlos Leite