Do Tempo ao Coração
E volto a murmurarDo cântico de amor
gerado na Sumériaàs novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amsterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas tantas mãosque nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presençaE da longevidade
do corvo do chacaldo loucodo eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempoao coração minado pelo cancro
Dos rins ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coraçãomas com pausa na pele
como «Roma by night» entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não que já não somos dois
Dos rins ao infinito A este que não outro
Ao que rola dos rinsAo que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto à entrada do poço
De soletrar em mim a ler nas tuas mãos
como é rápido e lentoe recto e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
David Mourão-Ferreira
Publicado em 13 de Julho de 2014