Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi talvez para sempre - a casa e o cheiro dos livros, a suave respiração do tempo, palavras, a verdade, camas desfeitas algures pela manhã, o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o serenamente e sem pressa, como eu nunca soube. E protege-o de todos os invernos - dos caminhos de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe as feridas devagar, com as mãos e os lábios, para que jamais sangrem. E ouve, de noite, a sua respiração cálida e ofegante no compasso dos sonhos, que é onde se esconde os mais escondidos medos e anseios. Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz antes de adormecer. E depois aguarda que, na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te, ainda que não te tenha revelado uma só vez que o queria. Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul que os dias trazem à casa quando são tranquilos. E nada lhe peças de manhã - as manhãs pertencem-lhe; deixa-o a regar os vasos na varanda e sai, atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim haverá sempre sol e para sempre o terás, como para sempre o terei perdido eu, subitamente, por assim não ter feito. Maria do Rosário Pedreira