Na vitrina lê-se Livros Raros e Usados sob o azul inclinado de um toldo – mesmo em frente à glacial cafetaria de franchise onde o dia destrata o desejo e não se pode fumar. Subo aos pequenos gabinetes mergulhados no doce bafio da literatura e percorro de A a Z as espinhas estreitas e rachadas da poesia. É o sítio mais vazio de Novembro e o que mais me reconforta; o livro que escolho, por metade de uma libra, traz no frontispício um nome e uma morada: Shirley Ann Eales, de Scottsville – um sumido autógrafo de maiúsculas magras e triangulares onde a imaginação encontra por enquanto pretexto e oxigénio suficientes para arder. O livro teve outra existência, pertenceu a outra casa, a outra mesa de cabeceira – e o pensamento, de tão óbvio, conjura de repente uma vertigem, é um corredor abrupto para a imensidão do mundo onde trafica o acaso. Ah, sabemos que a vida é improvável se damos por nós a cismar, a meio de uma tarde insípida, numa mulher desconhecida que lia poemas em Scottsville, nos anos 70. Mas haverá aqui alguma espécie de sentido, algum sinal guardado para alguém mais sábio ou inocente do que eu? Não sei quem és nem onde estás agora, Shirley Ann, mas como seria belo se pudesses um dia encontrar, por obra da mesma sorte, o teu nome nestes versos. Rui Pires Cabral