Se acaso um dia o raio que te parta (enfim obedecendo às fervorosas preces dos teus muitos amigos e inimigos), baixa de repente gigantesco e fulminante sobre ti, e mesmo se repete: e não te quebra todo, e como desasado, ou quem morto regressa à sobrevida, tu sobrevives, resistes e persistes, em estar vivo (ainda que à espera sempre de novo raio que te parta em cacos) - - tem cuidado, cuidado! Arma-te bem não tanto contra o raio mas principalmente contra tudo e todos. Sobretudo estes. Ou sejam todos quantos pavoneiam o consolo inocente de pensar que a morte não os tocou nem tocará jamais. Porque não há ninguém por mais que te ame, ou por mais que seja teu amigo (e, com o tempo, os amigos, mais que as criaturas fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se), que te perdoe que tu não tenhas estourado, no momento em que se soube que estouravas. É uma «partida» (ou um «regresso» sem piada nenhuma) absolutamente e aterradoramente inaceitável, humanamente e vitalmente imperdoável. Pelo que, sobrevivendo, pagarás, como se diz, com língua de palmo. Se és um pobretana, solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito, uma tontura, um como que silêncio negro, podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante está livro de ocupações prementes para te acudir. Uma que outra vez apenas, para alívio dos borborígmas morais dos teus estômagos, irão visitar-te carinhosos. Outros tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem, e quando em desespero tu reclamas. Não contes com mais nada senão morte. Se tens família, amando-te sem dúvida, inteiramente dedicada a ti que seja ou é, não penses que não és constante imagem sem desculpa alguma de andar pela casa, um pouco vacilante, às vezes suplicando uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te a fazer referências tidas de mau gosto à espada que para onde vás segue suspensa sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém, até contraditoriamente porque te amam, suportam que não sejas quem tu eras, mas só morte adiada, o que é diverso do horror de um cancro que não se sabe quando matará mas é criatura de respeito, crescendo em ti como se estiveras grávido. Assim, meu caro, com coração desfeito sem metáfora alguma, és apenas uma indecorosa e miserável chatice. Portanto, irmãos humanos, se estourais, estourai por uma vez aliviando quem vos quer ou não quer por uma vez. Jorge de Sena