Os anos passam. Gastaste-os, eles gastaram-te e ainda não escreveste o poema. Não te esqueças de que uma paisagem é mais poética do que uma janela do outro lado da rua. Mas dentro de casa também é poético: um cinzeiro cheio pode assemelhar-se a um vulcão antes de entrar em erupção, um livro por abrir em cima de uma mesa é um nevoeiro matinal, a chávena de café uma gruta ou uma lagoa, a máquina de escrever uma colónia de aves, as palavras pedras num ermo. Há cascatas que ninguém ouve mas que competem com aspiradores, rios torrenciais que correm por salas de estar, margens de musgo verde que enfrentam uma máquina de lavar louça, um sossego que invade as casas com cheiros do litoral e a lufada de asa das aves da charneca. Numa janela do outro lado da rua existe um farol de porcelana que fica aceso toda a noite para que os bêbedos não se percam e por trás da casa há um quintal com caixotes do lixo cinzentos, um jornal amarelecido, um muro adornado com caca de pombo, uma árvore miserável, um tordo assustado e um gato cruel. Tudo para nos recordar de como a vida é poética. Jóhann Hjálmarsson, versão de Vasco Gato