Vieram vários marginais ver quem cantava assim
- a coisa não é do bairro, diziam:
O Zé Camolas está preso faz quinhentos anos
e não deixou descendência que se aproveite.
Não, não pode ser do bairro.

Vieram polícias de várias intendências e emblemas,
a ver o que se passava.
Havia, de facto, um trinado pouco habitual aos dias úteis
(que era quando quase todos estavam ao serviço)
e talvez fosse importante saber do que passava,
e se o passante merecia especial espécie de atenção,
resmungo
ou trabalho aos colegas.

Veio a imprensa, ansiosa de notícias
(entre jogos particulares e o Euro 2016, um imenso vazio)
- quem dera nesse assobio haja algo de infame,
no mínimo uma queda do quinto andar ou uma querela
de várias ruas
(feitas a pedras, ou outros adereços),
com apelidos ciganos ou outros igualmente fáceis de entender
(Ucrânia, Marrocos, Roménia, enfim todos os que não têm
país que se veja, em espécie resort com pequeno-almoço incluído).

Infelizmente (para uns quantos)
tratava-se apenas do garoto Zé Carlos,
que acabava de se apaixonar por Célia,
a oitava maravilha do mundo.
Não sabendo o que mais ou melhor dizer, a confessar um amor nascente
assim cantava:
Eu fui ver a minha amada
lá prós baixos de um jardim
dei-lhe uma rosa encarnada
para se lembrar de mim

Eu fui ver o meu benzinho
lá prós lados de um paçal
dei-lhe o meu lenço de linho
que é do mais fino bragal

Minha mãe quando eu morrer
ai chore por quem muito amargou
para então dizer ao mundo
ai Deus mo deu ai Deus mo levou

Eu fui ver uma donzela
numa barquinha a dormir
dei-lhe uma colcha de seda
para nela se cobrir

Eu fui ver uma solteira
numa salinha a fiar
dei-lhe uma rosa vermelha
para de mim se encantar

Minha mãe quando eu morrer
ai chore por quem muito amargou
para então dizer ao mundo
ai Deus mo deu ai Deus mo levou

Eu fui ver a minha amada
lä nos campos eu fui ver
dei-lhe uma rosa encarnada
para de mim se prender

Verdes prados verdes campos
onde está minha paixão
as andorinhas não param
umas voltam outras não

Minha mãe quando eu morrer
ai chore por quem muito amargou
para então dizer ao mundo
ai Deus mo deu ai Deus mo levou*

Naturalmente, as autoridades não souberam que fazer
perante tal dislate;
Zé Carlos esteve breves horas na esquadra
(as suficientes, poucas mais, para provar que tinha
autorização de residência).
E, por acharem que a prevaricação não era assim tão grave,
lá o libertaram.
 
Célia amava outro,
e não deixou de se enganar.

Mas Zé Carlos cantou.

Rui A.

* Cantigas do Maio, José Afonso