Um desempregado não diz enfado,
uma mulher batida não diz enfado,
uma criança aflita não diz enfado,
um Homem humilhado não diz enfado
um homicida (estatisticamente, entre os vocacionados)
não diz enfado,
alguém literalmente esfomeado não diz enfado,
um pastor aflito com o seu rebanho
não diz enfado,
uma criança com dois ou três anos não diz enfado
(mesmo se já lhe sobra algum espaço para irritações médias),
um tipo que se afoga não diz
(no fundo)
enfado,
um sacana que se preze, entre os mais sacanas,
não diz enfado,
um banqueiro ou um agiota não diz
(na hora de causar miséria, na hora do gozo)
enfado.

Um jogador de voleibol não diz
(no momento de acertar a manchete)
enfado,
um viciado à séria não diz enfado,
um bombeiro a correr das chamas não diz
enfado.

A própria Dona Ermelinda, que de tudo se queixa,
mal se lembra,
no momento em que escorrega no vão da escada
(meio segundo antes de se aperceber do estrago, e por culpa do vizinho),
do sentido e ser do verbo enfado.

O Zé (e mais uns quantos que trazem no sangue uma revolta grande
e certezas mais ou menos nefastas)
não diz enfado.

A Beatriz Policarpo e Silva, apesar de se chamar Beatriz,
não diz enfado.

O Jaime, maior cornudo do bairro
(sempre furioso e pouco atento, para lá de qualquer merecimento),
não diz enfado.

Enfim, toda uma quantidade de vírgulas e apontamentos.
Talvez a mostrar que:
Fosse eu desempregado,
mulher batida,
criança aflita,
Homem humilhado,
homicida encartado,
esfomeado de pão e sobrevivências em forma de assim,
pastor aflito com os seus animais,
criança com dois ou três anos,
nadador incompetente a querer chegar ao cais,
sacana maior entre os sacanas mundiais,
representante de algum fundo monetário,
jogador de voleibol mais ou menos apetrechado,
viciado na hora do vício incontinente,
bombeiro em esforço;
fosse eu a própria Dona Ermelinda, figura do bairro,
ou o Zé, demagogo para lá do proveito;
fosse eu a Beatriz (Policarpo e Silva),
ou o Jaime, com todos os seus encantos

Não diria a palavra
enfado
enfado
enfado.

Crisóstomo Filho