Se te despedes assim
imprecisa como as leis
desta miragem insolente
cabe-me a negação do repouso
como sirene gritante
a sulcar a paz dominical
rumo a um corpo

o que pudemos a dois
não foi descuido de funâmbulo
nem a brasa derradeira da noite
a hipnotizar uma solidão canina
frente aos móveis
do desamparo

o que pudemos foi sim
uma baforada de lume
ao abrir-se uma porta
numa casa terminada
num mês ignoto
numa língua mútua

e o rosto meu e teu
espantou-se desse elemento repentino
da sua fome ancestral
do seu ajuste com os ossos
dos dedos enlaçados como o destino
das massas siderais

agora que a tua mão risca no ar
um símbolo atroz
de anonimato e ira
contraponho o piano
que tocas e decalcas
para o tecido do meu sangue
e sei inapelavelmente
que a curvatura do espaço
é o perene regresso
dos nomes

e que estamos já
estivemos sempre
em rota de colisão
com a testa de um anjo desirmanado
e que seremos a febre
luz na fuligem
claro
da morte

Vasco Gato