Escrevo sentado sob a fraca luz que do alto
desce. Tempo houve, outrora, em que as palavras,
vertiginosa enxurrada, me acudiam desenvoltas
à memória. Escrevo sobre a dura pedra do tempo
mal distintos, mas acidulados sinais. Sobram-me

exíguos e difíceis companheiros: a roxa luz
do ocaso, meia dúzia de livros de alguma poesia
árdua e monótona, um ou outro filósofo
de guardado renome, a música sempre
redentora, silêncio, a noite e mais silêncio.

Em cada lugar devoluto um rosto ausente, um olhar
velado confluindo sobre a mesma paisagem de sol
e agitada sombra. Por ela correram soltos ásperos
ventos e o desassossego de múltiplos destemperos,
de todo impotentes para de todo a desfigurarem,

não fora a mudável natureza dos homens. A luz
é fraca, apenas a pressinto na metamorfose
operada sobre os objectos que me rodeiam próximo.
Ponho sal nas feridas, mal ardem em mim o Aleph
imerso em sangue, a imagem do jovem adormecido

no linho de Alexandria, a lembrança de outros
corpos que ao meu emprestaram seu calor
e intimidade. Confundo as poucas sílabas
do meu nome, Pouco importa: o que havia a dizer
eu o disse com frontal clareza. Estancou

o caudal do pranto onde manara já o ímpeto
da alegria. Escrevo contra o silêncio. Eu
não tenho já nome aqui, a minha voz nasce
no deserto, vertical e desnuda, e rompe
lâmina cega, porém exacta; bate na pedra,

azorrague de fogo, irreconhecível e rouca,
sulfurosa e purificante. Por certo os outros
têm a História a seu favor. Sepultá-los-ia
o silêncio, não fora o encarniçado empenho
posto em cada palavra laboriosamente resgatada

para a árida economia deste discurso.
Obstinadamente luto, só e devagar, tacteando
a escuridão, a dúvida, o hiato. Tudo o que
vejo é interior, mas escorreito e claro. Esparsa,
a luz morrente, mal configura as coisas

ou me acaricia os ombros. Curvo-me sobre esta
morosa, pertinaz escrita. Ausculto a ténue
respiração da noite e da quietude. Sob o débil
crepitar do metal percorrendo o papel soa
perturbada a harmonia distante do universo.

Rui Knopfli