Eu tinha um plano para este texto, queria escrever algo muito confessional mas também disfuncional sobre o ato de escrever, desisti parcialmente disso porque recebi entretanto um email alucinante, é tão mau que se torna bom e serve melhor o meu propósito de explicar a doença da escrita - e se o que vai ler parecer inicialmente um problema irrelevante para a sua vida na verdade vai ser uma comédia derivante de termos o Estado na nossa vida, sim, o Estado com E capitular perante quem eu capitulei depois de ele (devia escrever Ele?) me ter enviado por correio eletrónico o melhor pior texto que li este ano, vamos então a isto: o meu plano inicial era portanto desenvolver pensamentos elaborados e certamente delirantes sobre a dificuldade e até o sofrimento de escrever, preparei citações do Gonçalo M. Tavares e do Roland Barthes porque temos de nos socorrer dos consagrados quando nos sentimos desesperados, fui parar a ambos depois de andar a pensar e a discutir e até a fazer terapia sobre a amargura de escrever, não sou caso único e conheço mais como eu, andam por aí muitos convalescentes da escrita, então decidi num esforço terapêutico que devia prosar sobre a angústia de escrever, tenho um distúrbio obsessivo: quando nós os patológicos começamos um texto escolhemos minuciosamente palavras que criem um determinado sentido rítmico quando antecedidas e sucedidas de outras escolhidas com a mesma minúcia, é uma dança intelectual; construímos demoradamente frases que retocamos infinitamente até acharmos que são capazes de incendiar os sentidos de quem nos lê, é uma piromania emocional; repetimos sequencialmente uma mesma palavra que adquire sentidos diferentes consoante as palavras que a acompanham, foi o que ainda há pouco fiz ao escrever três vezes "sentido", é uma repetição que tenta transformar o texto num refrão, trata-se de uma tentativa pop de deixar algo insistentemente marcado no pensamento do leitor; porventura até ousamos violar a pontuação porque queremos um estilo que cause inquietação; temos fundamentalmente a ilusão de atingir uma escrita singular que proporcione uma visão diferente sobre as coisas de sempre da vida, e quando falhamos nisto tudo, e nós os patológicos achamos que falhamos sempre, é uma aflição que tem manifestações e proporções físicas, há algo no corpo que se contrai aperta sufoca, que acentua a desconfiança na nossa autoconfiança, é um pânico provocado por uma obsessão de perfeição que na verdade é uma doença, tenho um neologismo para isso, inventei agora, é o escritismo, "os ismos são sufixos formadores de nomes abstratos", é o que está no dicionário, os ismos são também sufixos de problemas concretos, este está em mim e noutros, eu tinha alertado que isto ia ser momentaneamente delirante e agora vai ser instantaneamente diletante, Roland Barthes: "O estilo [do escritor] tem sempre qualquer coisa de bruto: é uma forma sem destino, é o produto de um impulso, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento. As suas referências estão ao nível de uma biologia ou de um passado, e não de uma História: o estilo é a 'coisa' do escritor, o seu esplendor e a sua prisão, é a sua solidão", e agora complemento com as "Breves Notas sobre o Medo" do Gonçalo M. Tavares, há lá uma frase que só não tatuo no meu corpo porque é demasiado longa para a minha altura mas não para o tamanho deste texto, "tratas as palavras que dizes como se fossem passageiros de primeira classe e tu um empregado servil e, face às palavras dos outros, comportas-te como se elas fossem o empregado servil e tu o passageiro que viaja em primeira classe", e como o Estado me pôs na terceira classe ou noutra pior num email que enviou enquanto eu andava a ler o Barthes e o Gonçalo constatei que tudo o que acabo de escrever é extremamente aborrecido, peço perdão, vamos passar para algo mais mundano:
eu quero doar o meu carro, é obrigatório comunicar ao Estado a mudança de propriedade, já o fiz: há covid e recomendam que se faça tudo online, mesmo que não houvesse pandemia recomendam o mesmo, não nos querem lá nas repartições deles e eventualmente nós também não, o site promete que até é mais barato fazer tudo digitalmente apesar de este processo de uns 15 cliques acabar numa página com referências multibanco para se pagar €50, fiquei com a impressão de que o preço por clique está muito caro, e dias depois veio esta resposta de volta, um email que vou afixar na parede lá em casa, é uma decoração surrealista:
"O pedido de registo automóvel número XXXXXXX/2020 foi actualizado para o estado Recusado. Motivo: Recusado, nos termos do artº 49º, alínea b), do Decreto n.º 55/75, de 12 de fevereiro, por o pedido de registo não ter sido requerido de acordo com o artigo 4.º, da Portaria n.º 99/2008, de 31 de janeiro, impedindo a feitura do registo - as pessoas singulares não podem requerer atos de registo online quando haja documentos para arquivar, os quais seriam necessários para a feitura do mesmo. Informo que o mesmo é passível de recurso, nos termos dos artºs 140º e seguintes do C.R.P., ex-vi o artº 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro. Por motivo e na sequência da recusa supra, solicita-se a Vª. Exª. , de modo a permitir a devolução emolumentar ANTES dos 30 dias estipulados no artigo 140º do CRP, o envio de DECLARAÇÃO em como NÃO IRÁ SER INTERPOSTO RECURSO AO DESPACHO DE RECUSA e do IBAN, SWIFT/BIC e do NIF DA ENTIDADE a favor de quem pretenda que seja efectuada a transferência, para o endereço XXXXXXX@irn.mj.pt. Mais se informa que não haverá devolução nas situações previstas no artigo 13º, nº 3, do Decreto-Lei 201/2015, de 17/09. CRA de Braga, 07/10/2020 A oficial de registos, com delegação de competências XXXXXXXXX",
é um email peculiar, eu sei, primeiro fiquei indignado depois entretido e agora sinto que admiro o autor, é um daqueles textos que crescem em nós, diz-se muito isso sobretudo os ingleses, it grows on you, é preciso um talento apurado para se escrever daquela maneira, é poesia burocrática, palmas, mas deixou-me hesitante, não sei se tenho de contratar um advogado ou um professor de Português porventura preciso de ambos, não entendi se vão ficar com os €50, se é preciso pagar mais, se me vão prender ou se estão só a gozar, é isso, devem juntar-se ao fim da tarde a ver quem venceu o concurso da resposta mais impercetível para o cidadão, eu sofro de escritismo mas o Estado padece de gozismo, mas há mais, o Estado enviou-me a seguir uma carta nos termos dos artigos 189.º e 190.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) mas também nos termos do n.º7 do art.190.º do CPPT porque tenho de pagar €12,14 nos termos do artigo 201.º do CPPT, e depois há os termos dos artigos 169.º e 199.º do CPPT que não sei de onde vieram, sinto que devo uma fortuna mas são €12,14 que paguei duas semanas antes de receber estes termos, não interessa, o Estado avisa que posso ficar com os bens penhorados sem eu saber exatamente porquê, sinto-me o Joseph K., tenho de reler o Kafka, mas sempre posso transformar isto numa lição literária enquanto o Estado não me penhora este computador em que eu escrevo: a escrita é uma escolha, "é evidente que hoje eu posso escolher para mim esta ou aquela escrita e nesse gesto afirmar a minha liberdade, pretender uma frescura ou uma tradição", a escrita "é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade", está tudo no "Grau Zero da Escrita" do Barthes, vai ler isso, Estado, e agora lê-me a mim, há dias recomendaram-me um medicamento para a minha doença da escrita, disseram-me para publicar um texto que eu ache só normal, do qual não goste muito, "isso vai libertar-te", pois aí está esse texto é este aqui, mas olha, Estado, faz o mesmo, escreve um texto que aches só normal quando comunicares com o teu cidadão, faz isso mesmo que não gostes muito, vai libertar-te, e nos termos do artigo 1 do Código de Procedimento do Meu Escritor Favorito, o São Rubem Fonseca, aprende com ele quando voltares a escrever aos teus cidadãos:
"- Por que você se tornou escritor?
- A única resposta inteligente para essa pergunta é aquela do Montalbán, tornei-me escritor para ficar alto e bonito".
Germano Oliveira, in Expresso Curto, 15.10.2020
O que eu ando a ler, ou do escritismo
Publicado em 16 de Outubro de 2020