Aspirações, mais ou menos
Gostava de escrever um dia sobre a ciência
e a conquista do espaço,
sobre religião e mitologias
e, mais ainda, sobre os vinhos e a natureza
da alma dos vizinhos;

Gostava de escrever sobre a luta diária de tantas mães sem filhos,
sobre o primo que não arranja emprego
e os desgostos de amor da Eulália;
sobre as esquinas onde se escondem miúdos de tantos bairros e aldeias,
umas sem escola e meninos, outras com meninos sem escola:
todas, ainda hoje, com padre ao domingo
(dizem que tem estado vivo).

Gostava de escrever os desafios
em todas as áreas domésticas do século XXI:
da moda à política internacional
e a muitas questões internas.
Perceber porque funciona o meu fígado, e falar disso.

Gostava de escrever sobre medicinas alternativas,
coisas sérias e brincadas,
sobre o universo e tudo o que abarca,
do direito à greve às rendições de pais e filhos.

Gostava de escrever sobre decisões mais ou menos acertadas,
da hora zero à vinte e quatro,
sobre a neutralidade que afecta e a indecisão que corrompe;
sobre as mulheres de má vida e os homens infelizes,
sobre as certezas viris que nos prendem,
sobre as dúvidas assintomáticas,
a evitar que façam mal.

Sobre a luz e a sombra nos olhos de um fotógrafo de Abril.

Gostava de me soltar ainda, na virtude mais careca
e no inacreditável penteado de Alberto,
que é um homem um pouco desorganizado mas percebe de selos como ninguém
e há-de casar com a Eulália.

Terão ambos alguns dias felizes e bem regados,
quase inevitavelmente seguidos da infelicidade precoce dos filhos,
aos quais de algum modo se renderão nos primeiros anos de birra
para logo a seguir, por vingança sistemática,
pelos seis de cada menino,
lhes trocarem as esquinas pela catequese ao domingo.
Com sistemática falta de cinema e total ausência de literatura
(dos cinco aos sete),
que talvez não fizesse especial mal.

Isto enquanto o vizinho que perdeu greve e sustento
não é chamado para nada.

Ficam os miúdos de Alberto e Eulália
sem saber que há espaço para outras conquistas
e reflexões matemáticas, atlânticas e filosóficas
que até poderiam ter
o seu interesse.

Pesa mais a almofada e a falta de viagem da Senhora Dona Eulália,
que não aprendeu com os desgostos do seu marido despenteado
(mais dado aos selos que às cartas)
na construção dos seus filhos pouco carismáticos

Mas não sou poeta,
mesmo sabendo que muita da boa poesia nasce
da falta de poesia.

É um desgosto, confesso.
Quase tanto como não ter o Cão
à cabeceira.

Sou porém razoável, a elencar assuntos.
E esse é, talvez,
um eterno descanso

Rui A.