Não é por acanhamento que olha para o chão, mas pela volúpia da surpresa. É capaz de percorrer bairros inteiros a matutar no xadrez das calçadas, em busca do vagaroso rei dos seus olhos. Nos lancis vê peitos magros de braços guindados, caudas enroscadas em flechas. Em soleiras de portas, canhões antiquíssimos a fumegar ainda por entre a lã do movimento. Fascina-a sobretudo a repentina simetria dos pingos de chuva. As vozes atravessam-na como bandeiras desferidas no cimo da mais erma colina. Toda a paisagem, fechando os olhos, é uma investida solitária, vociferada à constelação de nuvens que circunspectamente vai amparando o céu. Ela sabe que entre a terra e o espaço também os olhos se fecham. O mundo é, a todas as horas, nas nações e nos bosques, o útero de um raríssimo encontro de bichos predadores a que os deuses chamam embaixada. No teu sonho, quando a tocas, ela junta os pés, como quem namora um precipício, e balouça-se para trás. Estranhamente, também tu sentes que passaste os anos a fixar o caminho, que só agora, na linha dos seus ombros, surge o horizonte inapelável da encarnação. Que entre ti e ela é a terra e o espaço que cruzam os olhos.
Vasco Gato