As palavras são legíveis numa face, ilegíveis noutra
nenhuma das nossas frases sozinha quer dizer alguma coisa
o aparecer do mundo não se dá na transmissão de um significado
que se altera mas no movimento desapropriador, na passagem
outras espécies ouvem outros sons, veem outras cores
semeiam com a semente uma chama
um nome ilimitado exposto ao risco da perda
e aos seus arranjos recíprocos
onde a mais alta força se combina com a fragilidade extrema
e essa é a língua matinal do pensamento
nós porém iludidos cremos ainda na redução
como se fosse a redução toda a ciência possível
Não se trata de saber o que é
cheio de passado para colorir o presente
o destino revela-se surpreendente ainda
devemos antes interrogar a inocência
a sua mão de dedos mutilados sobre a parede:
será uma folha intacta menos folha do que uma folha devorada?
não haverá outras hipóteses para o fotograma das formas
e mil modos inéditos de amotinar a vida?
se fizéssemos um registo integral, camada a camada,
se parássemos a escutar uma única e solitária voz humana
no seu esplendor secreto, na sua incandescência, no seu dilúvio mais recuado
recomeçaríamos a história do mundo
Só o ato de se desnudar cumpre a mutação
pois crê no prodígio
e procura-o

José Tolentino de Mendonça