Acho que ficámos a meio
de uma frase, o telefone tocou
de repente, em surdina a voz
da tua filha — que surge em tantos
poemas, com tigelas, ora partidas
ora coladas, e “avessos de poema,
em fractura fluida” — a voz da filha
uma súbita flor de luz aberta no meio
da sala, por isso a frase ali suspensa,
entre parêntesis aquele fio de uma
conversa sem início nem fim, pela
janela aberta o rugido do mar de Leça,
junto a nós o miado das gatas, a cadela
com nome de poeta — Mily, como a tua
Emily Dickinson — a pousar sua cabeça
num joelho, “onde é que íamos?”, onde
é que vamos agora?, passaram os anos,
ah, o tempo, esse alçapão aberto numa
sala às escuras, o pé em falso e já só
nos vemos noutra década, mas algo
me prende àquela tarde incompleta,
ao diálogo interrompido, à ideia
que se esboroou com o toque
do telemóvel, custa-me agora
não saber a natureza dessa frase
deixada a meio, a sua textura,
se era feita de matéria fulgurante
ou só da poeira que cobre as coisas
banais, se calhar fizeste dela um verso,
se calhar acabou por chegar a mim por
outras vias, se calhar perdeu-se nesse
limbo cruel das coisas pensadas
que nunca chegam a ser ditas,
cintilações na água, ao crepúsculo,
logo apagadas pelo breu da noite,
e agora só esta tristeza de imaginar
o silêncio coagulado na tua casa,
ao longe o rugido do mar de Leça,
uma aragem que agita as folhas
das plantas, acaricia as lombadas
dos livros, toca os teus objectos,
tenta em vão abrir portas e gavetas,
à procura dessas palavras esquivas,
fugidias, perdidas para sempre.

José Mário Silva