A noite trocou-me os sonhos e as mãos
    dispersou-me os amigos
    tenho o coração confundido e a rua é estreita
    estreita em cada passo
    as casas engolem-nos
    sumimo-nos
    estou num quarto só num quarto só
    com os sonhos trocados
    com toda a vida às avessas a arder num quarto só
    Sou um funcionário apagado
    um funcionário triste
    a minha alma não acompanha a minha mão
    Débito e Crédito Débito e Crédito
    a minha alma não dança com os números
    tento escondê-la envergonhado
    o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
    e debitou-me na minha conta de empregado
    Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
    Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
    Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
    Soletro velhas palavras generosas
    Flor rapariga amigo menino
    irmão beijo namorada
    mãe estrela música.
    São as palavras cruzadas do meu sonho
    palavras soterradas na prisão da minha vida
    isto todas as noites do mundo uma só noite comprida
    num quarto só

    António Ramos Rosa