Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido — aquele
fechar a porta contra o som do mar.
— Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
— Ah e não esqueças: - deitar fora a chave
Canção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?
Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
— já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós —
quem falou agora? - Que importa quem falou?
- Que importa? Nada e 'nonada'. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasse quem
tivesse chamado.
Canção, o teu sopro é quente
e têm sede os teus ventos, esses animais
do ar que por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até à flor do sangue.
depois, as palavras em que te perderas serão
cinzas sobre o mar e espuma suja
entre as rochas. Que atraso ou afecto
te prende ainda a esta margem
Por quem esperas tu
canção ainda
agora
que já por todo o céu
a terra nos esqueceu
Morresses, agora, canção
enquanto corres ainda pelo sangue
de quem escuta — e
morrerias no fulgor último
que ao fundo, no horizonte
da linguagem,
da própria linguagem
se afasta já, e abandonando vai
os seus bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza dos migrantes derradeiros;
queimando página a
página
os últimos barcos.
Manuel Gusmão