É o mais difícil, este gesto
de amanhecer a palavra, o poema
deixando-nos a sós com a brancura da página.
O canto não chega, quando o chamamos
tal como a luz não vem
senão de mansinho
quando os flocos da noite se desvanecem
em orvalho límpido e claro.
E então a canção irrompe, novamente
mas apenas para aquele que se senta à beira do início
do seu início, e escuta.
É o mais difícil, este gesto
de descer à sombra, ao sem-fundo da linguagem,
para ouvir o canto.
Que rastro, que traço é este, que nos visita
e nos desperta a voz,
em manso segredo?
Que vislumbre nos toma e nos arrasta,
agora que um outro alfabeto nos é revelado,
exterior ao dito,
anterior ao hálito da palavra,
como se as sombras dos nossos antepassados
nos percorressem, por entre os nossos sonhos,
música límpida e tão próxima?
Cantam em nós essas vozes, silentes,
mas que esvoaçam no vento, invisíveis,
cantam em nós, mas as suas vozes são de rio
e tempo, de outros tempos,
em que também fomos outros.

Maria João Cantinho