Modus vivendi

"Werde der du bist."   Goethe

blogue de Ana Roque

28 de Abril de 2024

Da servidão

A servidão voluntária é terrível e é o problema fundamental da política. O problema não é o facto de haver pessoas que querem mandar. O problema é haver pessoas que querem obedecer.

Myriam Revault D’Allonnes


28 de Abril de 2024

É preciso

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles


27 de Abril de 2024

Três poemas

Ouve, tu que não
pensas na tristeza das coisas –
escuta aquele pato selvagem
grasnando sobre um lago gelado
numa aldeia da montanha.
*
Nada restou
daquele vento tingido de flores
que encheu o meu jardim.
Aqueles que agora me visitarem
verão apenas neve caída.
*
Na praia de Matsuo
eu espero na escuridão entre os pinheiros
por alguém que nunca virá –
e como os montes de sal incandescentes,
também eu sou consumido pelo fogo.

Fujiwara no Teika


26 de Abril de 2024

Biblioteca Pessoal

Virgílio não nos diz que os aqueus aproveitaram os intervalos de escuridão para entrar em Troia; fala dos amistosos silêncios da Lua. Não escreve que Troia foi destruída; diz “Troia foi”. Não escreve que um destino foi infeliz; escreve: “De outra maneira o entenderam os deuses”. Para expressar aquilo que agora se chama panteísmo deixa-nos estas palavras: “Todas as coisas estão cheias de Júpiter”. Virgílio não condena a loucura bélica dos homens; diz “o amor do ferro”. Não nos conta que Eneias e Sibila erravam solitários sob a escura noite; escreve: “Ibant obscuri sola sub nocte per umbram!
Não se trata, certamente, de uma mera figura de retórica, do hipérbato: solitários e escura não mudaram o seu lugar na frase; as duas formas, a habitual e a virgiliana, correspondem com igual precisão à cena que representam.

Jorges Luis Borges, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra


26 de Abril de 2024

Joaquín Sorolla



26 de Abril de 2024

pode custar-te tudo

se eu fosse eloquente na tua língua
dir-te-ia
como é
quando alguma coisa difícil te ama,
como é
quando começas a amá-la de volta,
e como isto pode
custar-te tudo.

Lucille Clifton, trad. Bruno M. Silva


25 de Abril de 2024

Dez dias que abalaram Portugal

Exposição com materiais do Arquivo Ephemera


24 de Abril de 2024

Abstracto!

A poesia do abstracto?
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento.
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor!
Uma ideia,
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa,
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura.
Perde,
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia.
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
são propriamente poesia.
Poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

Vitorino Nemésio


23 de Abril de 2024

Josefina Fernández



23 de Abril de 2024

Eu jogo, eu juro

- Era uma casa - como direi? - absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade

Herberto Helder


22 de Abril de 2024

Sozinha e feliz

Estou a tentar ficar melhor.
Não quero ir de viagem.
Pintei a sala de estar de branco
e tirei a maior parte das minhas coisas.
A sala nunca esteve tão vazia.
Ouço de repente o som de um trovão
e a chuva que subitamente cai lá fora.
Deixo a máquina de escrever e corro
ao exterior de vestido de noite e tiro
o lençol de algodão da corda.
É verão e eu estou a meio
da minha vida. Sozinha e feliz.

Linda Gregg, trad. Bruno M. Silva


20 de Abril de 2024

Joaquín Sorolla



20 de Abril de 2024

Mistanásia ou a consequência de ser indiferente

O que é a indiferença? Etimologicamente, a palavra quer dizer ‘sem diferença’. Um estado estranho e antinatural em que se esbatem as linhas entre a luz e a escuridão, crepúsculo e alba, crime e castigo, crueldade e compaixão, bom e mau.

Elie Wiesel


19 de Abril de 2024

capitão pirata

Sei de um capitão pirata,
que é dono de um verde mar,
que tem seu barco de prata,
mas deixou de navegar.

Que se enamorou da terra,
que se entregou à prisão,
e entre quatro muros erra,
murmurando uma canção.

Cecília Meireles