¶ 21 de Janeiro de 2025
¶ 21 de Janeiro de 2025
Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 21 de Janeiro de 2025
We cannot speak without incurring some risk, at least in theory; the only way of being absolutely safe is to say absolutely nothing.
Isaiah Berlin
¶ 15 de Janeiro de 2025
Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.
Adam Zagajewski
¶ 14 de Janeiro de 2025
¶ 14 de Janeiro de 2025
Não se trata de Goethe, que só conseguia
adormecer quando ao longe
gemiam os vulcões, nem de Horácio,
que escrevia na língua dos deuses
e dos sacerdotes. Os meus mestres
pedem-me conselhos. Vestindo macios
sobretudos deitados velozmente
por cima dos sonhos, ao romper dia, quando o vento
fresco interroga os pássaros, os meus
mestres falam por sussurros.
Consigo ouvir a sua voz trémula.
Adam Zagajewski
¶ 13 de Janeiro de 2025
Não existe hoje uma corrente de pensamento que constitua contrapoder, nem contra-estupidez ou sequer alternativa clara ao disparate, ao inumano e à guerra. A causa é simples: as elites esclarecidas e anticapitalistas que em parte constituem o centro-esquerda e maioritariamente o lideram, estão profundamente instaladas no conforto que o capitalismo sabe tão bem proporcionar. E quando esse conforto é perturbado, por exemplo com imagens de guerra, mais tarde ou mais cedo assume-se que estas são “insuportáveis”, que o coração não aguenta. Mas talvez essa insuportabilidade não passe de mimo, do mais puro. Vivemos todos — uns mais do que outros, já se sabe — vidas alcatifadas, brandas e confortáveis. Não fosse o diabo tecê-las, entrámos numa lógica de “deixa-me cá usufruir disto que é melhor do que cavar batatas”. É um pouco a lógica do grande capital: “Deixa-me cá explorá-los; antes eles do que eu”.
Graça Castanheira
¶ 12 de Janeiro de 2025
O feixe antigo de quem sacrifica ao fogo
E não sabiam vindas há pouco do Sul, frio,
Mas não gostaram de ver: a ampulheta, voltada
Escorrendo, areia, sangue
Andar o fumo fora da chaminé da fábrica.
O bicho-das-boas-notícias voltou a bater na janela
Do Amazonas. A de sul, pequena, e foram ambas
Ver - os pés de vidro voltar com uns de estanho
E cobre, ouro.
E não acaba nunca.
Pôs a mão no dorso da égua
Tremia.
A porta é um fio
Durante a guerra, visitada
Por as aves mais pequenas
A gwen, a wren, o sabiá
Forasteiras todas.
Depois da chuva ia lá ver
Os Andes, a fronteira, a ronda.
A lua nova no quartinho caiado
Sem ninguém, por onde passa sem
Se demorar, como tu gostas... E
O café, este negócio
A ronda não acaba nunca.
Gil de Carvalho
¶ 12 de Janeiro de 2025
¶ 10 de Janeiro de 2025
Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado
Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei
Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado
Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei
Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:
«Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida»
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 9 de Janeiro de 2025
Ai flores, ai flores do verde pino
se
sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai, flores, ai flores do verde ramo
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo
aquel que mentiu do que pos comigo!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi há jurado!
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amigo
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Dinis Rex
¶ 9 de Janeiro de 2025
¶ 8 de Janeiro de 2025
Viajar sem bagagem, dormir no comboio
….. num banco de madeira duro,
….. esquecer a terra natal,
….. sair de pequenas estações
….. quando um céu cinzento se levanta
….. e os barcos de pesca se dirigem para o mar.
Adam Zagajewski
¶ 6 de Janeiro de 2025
Pode ser, que o terrível não tenha explicação
E que a luz seja só a presença de silêncio.
Pode ser.
Pode ser que letra a letra se construa
O veneno insuficiente da palavra
De todo já perdida para a vida.
Pode ser.
Pode ser que eu seja peixe fora d’água
Sufocado na areia tonta de uma praia
Pode ser.
Pode ser que eu não passe
De cometa sossobrante
Num buraco escura da galáxia.
Pode ser.
Mas o que será que agora,
Para quem julgue ver-me,
Pareço neste instante ?
Adalberto Alves