¶ 19 de Março de 2024
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice
¶ 19 de Março de 2024
¶ 18 de Março de 2024
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice
¶ 17 de Março de 2024
Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
¶ 16 de Março de 2024
¶ 16 de Março de 2024
Mãos inexistentes segurando coisa nenhuma
zero graus talvez existam,
contudo. O leite também azeda
com a trovoada. Os vulcões têm nomes
permanentes, mesmo se não expelem lava.
O mesmo nome não promete que
sejamos semelhantes. Água e fantasmas
conseguem atravessar muitas coisas.
Consegues ver através de nada? Os fantasmas
vivem, sim e não. Ausente é quando estás
não estando. Às vezes sinto a tua ausência
mesmo estando tu presente. Às vezes estás
sem seres aquele de quem sinto a falta.
Nem todas as nuvens têm um nome.
Jannah Loontjes
¶ 15 de Março de 2024
O mal fascina-me porque acho que todos somos capazes do mal. Quando pensamos nas qualidades humanas, pensamos em coisas boas, no altruísmo, bondade, heroísmo, que somos capazes de nos sacrificarmos por uma ideia, pela nossa família, pelo nosso país. Tudo isso soa muito bem e é humano. Mas o oposto, o egoísmo, a violência, a inveja, todos os vícios, isso também é profundamente humano.
Fernanda Melchor
¶ 15 de Março de 2024
¶ 14 de Março de 2024
Por falta de energia, no rasto
Da doença, nos últimos anos
Poupei-me, mas eis-me de volta
À
linha de partida: todo o dizer
Verdadeiro é um dissídio.
Lá fora, rajadas de vento
Fustigam-nos – um ciclone
Desceu sobre os ombros
Da cidade, despenteia-a,
Dobra os ramos das acácias,
Penetra no forro do telhado
De zinco do alpendre que abriga
A esplanada em que saboreio
Um café sem açúcar (é
Como se ingerisse o bico
De um lápis) e faz-me ouvir
Os martelos de Pitágoras.
Nunca desfalece a energia
Na natureza, nunca refreia
E devemos imitar-lhe o ímpeto,
Denunciar como desconfiamos
Do presente e que embora
A vocação seja um borrão
É o momento de agir,
De abraçar o desengano.
Nestes dias de tristeza sociológica
(Parece que nos povos exibir
O corno é o mais premente,
Necessitam de regredir
Pra se acreditarem domésticos)
Entretive-me com o celta Kenneth
White, o das alvas montanhas
Escarpadas, sobressaindo
Como volutas no nevoeiro.
O Ken é tão brilhante na teoria
Como às vezes coxo no verso,
Enumerativo e sequencial,
Mais do que arquitectónico,
Mas é alimento seguro
Para estes dias de uma estúrdia
Incapaz de reconhecer-se até
Na simples arte de fazer compotas.
Também os romanos destilavam
O azeite de quarenta maneiras
Antes de colapsarem
E desse saber ser esquecido
Por mais de dois mil anos.
A lição que doravante convém
Lembrar, incansavelmente,
Nesta época de pavorosas
Correntes de um vento malsão
Que a História e o próprio modo
Civilizacional arrastam: tudo
O que está vivo sempre
Nos perturba e o que magoa
Não está na dor, mas
Na exigência de a atravessarmos.
¶ 13 de Março de 2024
¶ 13 de Março de 2024
Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 12 de Março de 2024
Quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor
Matsuo Bashô
¶ 12 de Março de 2024
O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O
poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.
¶ 11 de Março de 2024