¶ 2 de Março de 2025
Se o que perguntas é
“vês fantasmas?”
a resposta é “não”
a resposta é
“faço uso das formas poéticas da fala
daquela que se corresponde com a figura poética da vida,
as aparições, posso situá-las na árvore e nas ribeiras
isto implica que
as minhas artérias devem contar com elas
todos dos meus órgãos devem contar com elas
dar-lhes um lugar”
Se perguntas “vês fantasmas?”
a resposta é “não”
a resposta é “o idioma constrói em mim uma horta para defuntos
todos os meus órgãos lhe cedem o lugar
eles/elas são a memória um coração e a linguagem”
O céu
com todas as suas luminárias geométricas
não é diferente da árvore que te aparece
Estende a mão, agarra o norte
A noite é outra com a terra
Chus Pato, trad. João Paulo Esteves da Silva
¶ 2 de Março de 2025
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¶ 1 de Março de 2025
Não sei senão do ínfimo
e do murmúrio das pequenas coisas,
as que não chegam à palavra
desenhando-se sob os álamos,
em quieta reverberação.
E nada sei, senão desse canto
Invisível, mais sonho que metáfora,
do tempo que é no fruto
ou do que sabe ser sol, sem alarde
do breve e da passagem.
E nada sei dessa grandiloquência
dos homens, das suas promessas
e dos gestos que traem o coração,
dessa palavra ou excesso que mata
a perfeição circular do instante.
Se é vida, sangue ou oiro,
nada sei, nada de nada
escondido que ele é
no ínfimo e na sombra. Oculto.
¶ 28 de Fevereiro de 2025
Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.
Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?
O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isto fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.
Lamentam-se de mais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.
Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.
Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
«Paciência», dizia eu, «não morrerei por isso.»
E esperava o sândalo e a canela.
Fernando Assis Pacheco
¶ 27 de Fevereiro de 2025
Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
– Fernando Assis Pacheco
Um desejo tão espúrio, escrever,
quando a monte tem andado tudo.
Nada do que importa está escrito, só repousa
a intensa sombra dos seus olhos
entre o seco arvoredo dos signos.
É tão estranho viver, tão roubado
às flores, ao sono, ao vinho, quanto mais
esta vaidade do que nunca teve brilho
mas empluma a linguagem
pelas falhas do que outros dizem.
Tinha passado anos a talhar madeira
alumbrada e rosa, quase viva, enquanto
no rosto a ilusória imobilidade
do fogo me dava a impressão de existir.
Sabia como recrudesce o tempo
em redor dos materiais — cada hora
uma navalha suja, cada imagem
uma jóia deletéria, o mar
lavrando pelas ondas a sua cicatriz.
Quis sofrer o mel, metáforas ocultas,
espécies rebentando-me por dentro
com os seus anzóis extintos. Nada mais
cretino, já que à vista começava a apodrecer
a infância, os frascos a estalar, a carne
rigorosa, uma arca desfalcada por invernos
e famílias vagamente nucleares.
E eu não via, eu queria estar à sombra e escrever
mulheres no esquema dos meus dias,
mulheres cujo coração se abate, o meu
estético sentido era o terror. Eu via e não via,
e de livros e mulheres só queria
erguê-los como grandes naus
e escrevia. Escrevo ainda,
qual aranha com as patas na penumbra.
Escrevo as coisas que das mãos
me caem, rachadas e celestiais.
De óculos escuros, dou-lhes o veludo
do outono, ou da fé o roxo manto.
Faço grandes passeios a pulso. De resto,
ando a monte como tem andado tudo.
Andreia C. Faria
¶ 25 de Fevereiro de 2025
Com o rigor do guia turístico
à sombra dos monumentos poderia descrever
as coisas que ainda amo.
O calor da roupa ao fim de um dia de uso,
o interior adocicado e acre dos pombais.
O coração fresco das igrejas.
A superfície lenta da beleza.
Um cão cheirando a sol,
o cadinho do sol
perfumando a carne viva.
E também a ideia dos trópicos,
aves prometendo vómito e ternura,
a gaiola aberta, lassa,
qualquer coisa sexual na lassidão.
A palavra propulsão e cravos bem temperados.
As mãos, que envelhecem
antes que o corpo dê o tempo por perdido.
E das mãos pequenas manchas,
a velha mímica de semear.
Mulheres de uma beleza ínvia,
amarga. Olho-as
como quem experimenta o gosto
térreo de uma raiz.
Andreia C. Faria
¶ 25 de Fevereiro de 2025
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¶ 22 de Fevereiro de 2025
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¶ 21 de Fevereiro de 2025
Um trapézio
bambo e desunido, com pontas excrescentes,
uma rosa no fundo das costas
com o gosto do húmus, o mofo das caves
é mais acima a dor
ciática, o lóbulo queimado
por magia ou vingança,
E o gosto por cantigas populares,
o cálice venéreo,
a pronúncia da terra, impúdica,
a língua aberta e desfolhando-se, a escaldar.
O corpo é cheio, já se sabe, de nervos e ressaltos
raramente líricos
cheio da lembrança do negrume e da pobreza,
à garganta espinhosa do sexo,
os pés calcados,
o primeiro milho nos currais da humilhação.
Chega-se muito resumidamente a velho.
A criança espera ao domingo o infalível
osso fluorescente, oferecido com o jornal,
o estupendo osso da mandíbula de um dinossauro
de quem virá a ser, desfeita
a impura impressão de beleza,
um digno contemporâneo.
Andreia C. Faria
¶ 20 de Fevereiro de 2025
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¶ 20 de Fevereiro de 2025
Até aos trinta anos tens
a cara que Deus te deu. Depois
tens a cara que mereces. É uma promessa
de ironia, uma sentença
sem recurso.
É-te assim dito:
estás entregue ao labor íntimo
do que comes, ao número de horas que dormes,
àquilo que fazes e sobretudo
àquilo em que pensas. Deus
(perdoa-lhe a fraqueza)
tolera-nos enquanto somos jovens,
ampara-nos, alisa-nos
a fronte após um desgosto, talvez
nos ame, mas deixa-nos
sozinhos quando a beleza
é terreno pouco firme
e assiste de longe
ao desafio temerário que lançou
a cada filho.
Sabes então que o rosto é uma flor
plantada no escuro, uma corola
tenra, redonda e impenetrável
que desabrocha e se abre
com as pétalas lisas e brilhantes, ou
confusas e despenteadas,
conforme a força
e a direcção do vento.
Andreia C. Faria
¶ 19 de Fevereiro de 2025
Se fosse mesmo necessário classificá-lo com uma palavra, eu diria que o traço predominante do seu carácter se resumia em desejar a liberdade. É que sabia tão bem esbanjar as suas vantagens, como defender-se dos prejuízos.
Joseph Roth
¶ 17 de Fevereiro de 2025
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¶ 17 de Fevereiro de 2025
Os bons momentos passam, mas os maus também. Mutabilidade é a nossa tragédia, mas também a nossa esperança. Os piores momentos, e os melhores, passam sempre.
Boécio