Libelo contra a vida de
Libelo contra a vidade officiis
(ou do desgaste visível)
Mostra-se farto, no duplo sentido de saciado e levemente enjoado; conhecida a presa na plenitude e, por consequência inevitável, exaurida a energia vital que transportava ( levado a outrance e com a força da convicção o vastíssimo tríptico formado por jus utendi , fruendi et abutendi ,conferido pela titularidade implícita), nada faz na órbita do entediado proprietário, a não ser agastá-o levemente com os seus múltiplos defeitos vistos às lupa, ou aborrecê-lo ainda mais através de quaisquer actos logo tomados como excessos. O estado de quase permanente irritação, o desprazer traduzido no tom metálico, mostram bem os sinais da usura do tempo. Afinal, se é verdade que o acumular de unidades (dias, meses, anos) forma o lastro de uma memória, também a outra face de Janus se evidencia e faz pagar: esta é uma época que valoriza a volatilidade, o consumo rápido, mau grado a maior ou menor consciência e até aparente recusa dessa dissolução circunstancial, e ninguém sai incólume do seu próprio tempo. Mas nem por isso dói menos a quem se sente um dejá vu no olhar em que se revê, um fardo não muito pesado, mas ainda assim embaraçoso, suportado com paciência e espírito de sacrifício por uma espécie de indefinido dever assumido como pagamento pelo entusiasmo passado.
Honrar a permanência, ser fiel a uma constância prometida em contextos tão remotos que parecem mitologia, pode ser, não uma forma de consideração, mas um terrível pagamento de promessas, não por ser duro ou brutal, mas antes pelo registo de brando desencanto que produz uma penosa sensação de desamparo no destinatário (que assiste, desfeito, a este estertor de um deslumbre que passou). É certamente doloroso o fim brusco de um tempo em que se projectou tudo o que se tinha, em que se pagou para ver até ao limite e se perdeu, mas é muito pior ser tolerado mansamente na arena do aniquilamento, extinto todo o interesse que nos tinha feito brilhar, silenciados os risos, instalado o frio no lugar do fogo.
AmAtA
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Publicado em 3 de Junho de 2003