Da transcendência do amor
Da transcendência do amor
(O amor assume muitas formas, mas gera um calor idêntico na alma)
Há amores que são eternos, não enquanto duram, o que não me diz muito, apesar de Vinicius, mas enquanto nós próprios duramos (o que, convenhamos, é a eternidade possível; a querer, que seja o máximo).
Hoje dei por mim a pensar em datas, números, coincidências, acasos, sentidos. Não sou muito dada a sinalética algébrica e fiquei surpreendida com alguns resultados inscritos na minha vida através da dança curiosa dos algarismos.
Foi quando pensei nisto que percebi que a pessoa que me deu a chave mais preciosa para a liberdade nasceu há precisamente noventa anos, o dobro da idade que hoje tenho. Já não o vejo, assim, em pessoa, digamos, há muitos anos, mas parece sempre que, em qualquer momento, nos podemos reencontrar e pôr a conversa em dia- não propriamente contar as novidades, porque todas as que eu sei, ele sabe por mim, mas conversar como fazíamos, de tudo e de nada, de histórias da China e de rosas, de viagens e de cidades que ele me mostraria um pouco mais tarde (mas que afinal os deuses, justos para comigo apesar de tudo, decidiram ser outro amor eterno a mostrar-me, mesmo que já antes as tivesse visto sózinha). Falava-me sobretudo de Londres e dos escritores ingleses e americanos da sua preferência, de Paris e de pintura. De cinema americano e italiano. De música (por ele aprendi piano e solfejo, o que, na época, não posso dizer que tenha agradecido em demasia...). Aliás, cantava e assobiava para si mesmo com frequência. Era um conversador que gostava de pessoas e de ideias, que tinha tido a sua tertúlia no “grupo da farmácia” (a clássica reunião dos intelectuais da terra, típica até aos anos 60, quando o café substituíu, nas vilas e cidades pequenas, o anterior pólo aglutinador).Tinha uns olhos verdes doces e gentis, um sorriso frequente, humor e inteligência.
Mas a tal chave que me deu, e que guardo até hoje para partir quando e para onde quero, foram os livros. Mal comecei a ler, os livros apareceram ao pé de mim: vinham de vários lados, da biblioteca que frequentava, dos que estavam no sótão; mas os melhores eram os que me levava a comprar, em amenos fins de tarde, à livraria do outro lado do jardim. Saíamos de casa, passeávamos uns minutos, e o sorriso informava: íamos à livraria. Não era muito grande, mas já tinha uma quantidade de estantes razoável, a livraria do Diário de Notícias. E, naquele tempo, para uma miúda que gostava de ler, era uma festa entrar, poder procurar os livros que queria, de joelhos ou em cima do escadote, e escolher até ao montante fixado previamente pelo sorriso ( e era um plafond sempre generoso, que permitia comprar o que mais desejava). A censura quase não existia, mas o conselho sim, embora porventura estranho: algumas coisas um pouco cedo demais, como os clássicos russos (Ana Karenina aos oito ou nove anos não é de todo convencional...), outras típicas da época, como Júlio Dinis; pouca poesia, que só Camões tinha a aceitação plena. Curiosamente, passados muitos anos, ir à livraria, uma actividade que me acompanhou sempre como uma compulsão libertadora, veio a tornar-se outra vez numa festa de descoberta autónoma mas partilhada.
Única neta, filha da única filha, o meu avô amava-me e fez da minha primeira década de vida um contentamento . Depois, embora só contasse pouco mais de meio século, a sua vida aqui acabou de forma rápida. Um dia, noutro lugar, voltamos aos livros.
Ana Roque
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Publicado em 19 de Agosto de 2003