Reflexões bucólicas VI Partilha(s) Pensava há pouco, ao iniciar este post, que os meios escritos têm como melhor qualidade o facto de serem tão pouco intrusivos e, por isso (ou, como dizia o poeta, quase só por isso), muito úteis quando queremos dizer coisas e não sabemos muito bem se estamos a ser maçadores: neste caso, basta aos destinatários acidentais, quando infelizes nessa condição, não permanecerem – e viva a debandada para outro território virtual! Não sendo o caso, passo ao assunto: em primeiro lugar, fico muito feliz quando alguém (habitante ou mero passante da blogosfera) diz encontrar algum préstimo nas considerações registadas no modus vivendi, pela simples razão de que, melhor do que outros que viveram menos tempo ou diferentes circunstâncias, posso tentar entender certos percursos de vida,em mais do que uma vertente.É, por exemplo, o caso de acordar para retomar o ponto em que se deixou a vida na véspera, sem esperança de – ao menos de imediato... - reconhecer novamente o sentido ao caminho, uma realidade que nos abate de forma quase indescritível; é mais fácil quando já se sabe que vai passar, que o tempo (nunca se sabe quanto, a medida varia de acordo com a nossa história e as circunstâncias do momento) vai mesmo, de forma inelutável, levar aquele estado de alma doloroso para longe (esperemos que até nunca mais - mas também isso não é garantido, infelizmente!). Também o próprio desalento de ter apostado tudo (mais certo é dizerquase tudo, porque é mesmo isso que nos vale – o termos deixado sempre uma micro reserva no fundo de nós mesmos, onde ir apoiar o arranque para a partida que, embora a contragosto, vamos ter que fazer) numa empresa que chegou ao fim (não, nem sempre “faliu”, a vida é que nunca se engana com as pessoas e os olhares que eram coincidentes vão deslocando o horizonte, até ao paralelismo cruel do desencontro) não é fácil de gerir, de domar. É verdade que, então, os momentos de altos e baixos se sucedem, mas essa alternância quase desconcertante é um meio de garantir que respiramos – por sorvos, como os pescadores de pérolas, e por vezes com um tempo de mergulho quase insuportável, mas finito. E é ainda verdade que temos essa tendência judaico-cristã(sim, mesmo aqueles de nós que se dizem “socialistas, republicanos e laicos”) – de olhar para o lado e quase sentir culpa da nossa dor, do nosso pesar – afinal, não estamos a fazer quimioterapia, os nossos filhos estão vivos e bem, não dormimos na rua, não dependemos da heroína – por isso, será que teremos o direito ao abatimento da alma? A resposta é (adivinha-se...): SIM! As almas e os seus estados não se medem, as dores não se comparam – aí, cada um de nós é uma bolha, um universo fechado em si mesmo ,e só faltava sentirmos que a nossa depressão é indigna por não estar associada a um desastre de magnitude respeitável à escala global... Os nossos desastres pessoais são justificativos das nossas neuras; sótemos que saber travá-las para não passarem de lutos a lutas contra nós mesmos. Cumprida a “escolaridade obrigatória dos afectos”, quase sempre se sai desse estado desanimado e de algum desamparo, mais forte, sem perder a sensibilidade e ganhando (com sorte!) algum bom senso. E, se é certo que é muito melhor ter um projecto partilhado, a verdade é que a felicidade deve muito mais solidez ao facto de se alimentar um projecto nosso, mesmo sem partilha! Ana Roque --------