Reflexões bucólicas V A propósito desta curta temporada isolacionista (mas, como bem fez notar um amigo, sendo-o de forma muito selectiva, porque há rede no telemóvel...), ocorreu-me que, para além do trabalho de escrita (a outra, a genuína, a de negra veste académica) que aqui se consegue levar a cabo em menor tempo, por falta das distracções tentadoras, se tem oportunidade, não apenas para pensar, mas sobretudo para não pensar. Este esvaziamento da consciência, tantas vezes usada até abarrotar de informação (muita dela inútil ou até danosa), a avaliar situações, a antever cenários para daí a duas horas, dois dias ou duas semanas, a (pre)ocupar-se com imensa matéria poluente, é o melhor resultado de meia dúzia de dias “fora de circuito”. E as coisas tomam outro peso, outra textura, outro relevo, para bem e para mal, e não porque a razão as tenha tratado com maior profundidade ou exaustão, mas porque elas surgem conformadas de diferente maneira: pequenas misérias do quotidiano que eram objecto de indignação e desconforto tornam-se tão importantes como os traços remotos que os aviões deixam lá muito acima das montanhas, esbranquiçados e evanescentes, desfazendo-se ignorados e irrelevantes; e, no outro extremo do arco, mesmo os grandes empenhos de alma, votados a abater algo maior do que nós próprios , a operar salvíficas transformações sobre o que realmente nos move, é revisto à luz da humildade, da tomada de consciência da nossa real dimensão, e da constatação de que a cada um cabe apenas o seu próprio destino (não no sentido de condenação inevitável, mas, ao contrário, de matéria prima para trabalhar com a dedicação e o esforço de que formos capazes) , e não mais do que isso. Há uma maior noção da nossa transitoriedade no simples relembrar de outros tempos e de outras vidas que povoaram o espaço agora chamado nosso; há a certeza de que a aposta a fazer só pode ser em nós mesmos, no nosso crescimento, no desenvolvimento de uma real inteireza e autonomia, ponto de partida para o estabelecimento de sólidas relações que não se alimentem da dependência, da mistificação, da usura, do aproveitamento e da insegurança. Para além dos afectos que nascem connosco ou que nascem de nós, há todos os outros que nos podem iluminar a vida, alargar os horizontes em todos os sentidos, enriquecer . Basta estar atento. É por causa deste tempo com outros sons, outra luz, outro espaço, que o modus vivendi reparte agora algumas palavras, presentes de férias: consideração, confiança, consolação. Palavras para guardar em lugar seguro, com flexibilidade e permanência. Ana Roque --------