Regresso (temporário, como tudo o resto) Nova etapa concluída, volto a estar uns dias por aqui, antes de me deslocar (um bom pedaço...) para Oriente; até lá, algumas notas trazidas do tempo silencioso. Ordenadas de I a Vi, representam os dias passados, vividos num registo um pouco diferente do habitual. Terminam com o haiku, post actual, actualíssimo. Porque o silêncio se parece com o vazio, é difícil de aceitar quando as palavras são desejadas. O lume dos dias. Ana Roque Reflexões bucólicas I (ou da desolação invisível) Um pequeno vale atravessado por um rio e rodeado de montes (ainda...) arborizados. Uma varanda estreita sobre a água brilhante que corre muito límpida, debicada por inúmeros pássaros, manhã cedo. O cansaço da véspera dilui-se lentamente, mas permanece uma vaga desolação, a dúvida insidiosa vinda de tão longe que, afinal, não era de sítio nenhum: será de facto mero delírio esperar, de quem quer que seja, como regra e por sistema, simplicidade e vontade de comunicar, sem mais? A esta pergunta desconfortável, soma-se a constatação de que a alegria é um dos mais frágeis estados de alma porque a decepção tem o poder de a decompor inteiramente, sem aviso, com o ribombar trovejante das surpresas desagradáveis: sermos confrontados com leituras ínvias de palavras sem peso de malícia transformadas pela perfidez nas intenções, apercebera dissimulação alheia e a corrupção daquilo que é a simples disponibilidade humana, afável e comunicativa, pode ser de muito difícil entendimento e até de nula aceitação. Os avisos acerca deste tipo de atitudes e da sua relativa frequência em meios onde a máscara é facilitada pela virtualidade não são muito úteis para quem prefere acreditar na sanidade, sua e dos outros. Asneira, disseram as vozes do bom senso e da experiência maior. Em certo sentido, sim. Mas, naverdade, a falta de ética e as más intenções de quem desconhecemos e nos desconhece deve apenas reverter para o capítulo das “lições sobre a diversidade da alma humana”; convenhamos, com realismo, que, se a ética fosse um dado adquirido, não tinha desafiado a inteligência e a sabedoria de sucessivas gerações de filósofos, desde a antiguidade. Não, estas experiências de confrontação com uma realidade menor nem sequer são lições amargas, são pequenas notas de rodapé no manual de utilização da vida. Só dói o desconhecimento de quem, para nós, conta; só pode magoar o repúdio, por acção ou omissão, da nossa defesa intransigente por parte de quem nos tenha um dia prometido proteger de tudo o que fosse “mal do mundo”. Em suma, só somos vulneráveis às quebras de quem nos significa amparo; de quem, se nos desconhecer, nos mata um pouco no fundo de nós mesmos. Ana Roque --------