Retrato O homem era consumido
Retrato
O homem era consumido por um dom desmedido como se sofresse de uma doença incurável; sentia-se perigosamente mortal, passeando pelas vidas que cruzava com a mesma dor amante que o habitava pelas ruas e praças redentoras da sua cidade luminosa de sol e madrugada. O seu talento de oiro pesava-lhe no corpo magro, esfumado e belo, obrigava-o a escapar-se muitas vezes por entre as nuvens para conseguir responder ao esforço disparatado de respirar. Por fora, visto de outra cidade, de outro mundo até, podia, em quase perfeito trompe d'oeil, passar por rapaz de cabelos caídos nas mãos do vento e olhos oferecidos pelas estrelas. Porém, se falasse, mal falasse, o rapaz era um homem preso nas cadeias tormentosas do seu dom, da amarga doçura de voar, prestidigitador das palavras dos outros, criador sublime das palavras suas. O rapaz? O homem? O anjo.
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Publicado em 14 de Novembro de 2003