Conjecturas (dispersas, hoje ao
Conjecturas
(dispersas, hoje ao som de Mahler, com a Canção da terra)
Às vezes, os maiores dissaborese as frustrações mais dispensáveis resultam de uma simples troca de palavras; não me refiro a uma qualquer troca intersubjectiva de palavras, o chamado mal entendido entre pessoas que provam a dura improbabilidade da comunicação de que falava Nicklas Luhmann, que discutem e se desgastam por não se entenderem; menciono, sim, uma cosa mentale só nossa, interior, um desacerto de significantes entre o que chamamos à realidade vivida e o que ela de facto é. Esse desvio pode pesar mais do que se imagina à primeira vista: o que temos pode ser excelente na categoria a que pertence, mas não preencher, nem de longe, o papel a que reportamos essa vivência, erradamente catalogada por um wishful thinking perverso e preventivo do prazer. Se o que vivemos é importante para nós, se nos estrutura de alguma forma, valerá a pena desvalorizar essa realidade por não corresponder ao "conteúdo densificador" que lhe queríamos assacar, no quadro designativo pré-conceptual que para ela enunciámos? O novo (face à experiência anterior mas, sobretudo, face ao quadro de expectativas interiorizado pelo modelo fornecido à partida pelo registo familiar, social, cultural) é o mais difícl de denominar, mas isso não deve ser uma fonte de sofrimento. A coragem de inovar é o melhor antídoto contra os preconceitos.
O uso das palavras só nos é prescrito nos casos normais; nós sabemos, não temos qualquer dúvida acerca do que, neste ou naquele caso, temos de dizer. Quanto mais anormal for o caso, tanto mais duvidoso se torna saber o que se deve dizer.
Ludwig Wittgenstein, in Investigações filosóficas, trad. M. S. Lourenço, ed. FCG (2ª edição).
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Publicado em 21 de Dezembro de 2003