Estória de desencantar Há muitas,
Estória de desencantar
Há muitas, muitas horas, o homem disse à mulher que o amava a contragosto que não a levaria à sua cidade; ela perguntou porquê, um frio súbito inundando-lhe as veias na quente noite de lua cheia sobre o rio, sabendo que não queria ouvir a resposta, que a faca viria trespassá-la uma vez mais sem óbvio derramamento de sangue, que sentiria apenas o ar cada vez mais rarefeito e os olhos tapados por uma inoportuna chuva interior. Ele recostou-se na cadeira, confortável na segurança do seu imenso poder precário, e disse-lhe que só lá levava quem merecia. Ela fez o que era suposto, não se esquecendo, meticulosa e experiente, de sofrer na justa medida do esperado e dentro da mais absoluta proporção. Depois condenou-se ao tempo de convalescença adequado às circunstâncias, e nunca se esqueceu de voltar as páginas da agenda até ao dia marcado para tudo voltar ao que sempre fora. O homem foi à sua cidade e não a levou. Ela respirou fundo, aliviada por estar morta há tanto tempo.
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Publicado em 11 de Dezembro de 2003