Evidência (ou da virtualidade a
Evidência
(ou da virtualidade a que chamamos paixão)
"Trazemos em nós uma tal necessidade de amor que, por vezes, um encontro no momento certo - ou talvez no momento errado - desencadeia o processo de fulminação e de fascinação.
Nesse momento, projectámos sobre outrem essa necessidade de amor, fixámo-la, endurecemo-la, e ignoramos o outro que se tornou na nossa imagem, no nosso totem. Ignoramo-lo crendo adorá-lo. Aí está, efectivamente, uma das tragédias do amor: a incompreensão de si mesmo e do outro".
Edgar Morin, in Amor, Poesia, Sabedoria, Ed. Instituto Piaget.
A verdade lapidar deste pequeno texto é comprovável a todo o momento, num corte sincrónico efectuado sobre a vida de qualquer um de nós, humanos. Às vezes, daí pode resultar uma evolução para um afecto pleno, na base de um autêntico (re)conhecimento (por mero acaso possível e altamente improvável) entre aqueles dois seres que projectaram as suas expectativas em plano de reciprocidade - e só este factor da simultaneadade já é uma "lança em África", sendo bem mais usual que só um dos intervenientes esteja em estado de enamoramento, e o outro se sinta meramente cativado pelo culto que, suposta e equivocamente, lhe é dirigido. Mas, as mais das vezes, a paixão ( a submissão, no fundo, a um holograma que nós próprios projectamos, sem grande necessidade de motivação efectiva do exterior, apesar das aparências em sentido contrário) é um surto explosivo, de duração variável, sem conversão em amor (esse, sim, conhecimento de si mesmo e do outro como forma de negação da morte, vitória sempre transitória de eros sobre tanatos, a única eternidade possível). Em casos raros, a paixão torna-se uma obstinação, uma luta inglória e arrastada contra a realidade, que se força e tenta alterar até corresponder ao mapa que desenhámos dentro de nós próprios. Nunca resulta e, dependendo de imensas variáveis, pode durar muito tempo, tornando-se uma doença crónica, ou quase. Com muita sorte, pode curar-se, sabendo que certamente já se perdeu mais do que se ganhou.
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Publicado em 28 de Janeiro de 2004