Defesa da heresia A heresia* é a capacidade de reavaliação da doutrina dominante (ou que nos domina, o que não é necessariamente a mesma coisa), o exercício mais pleno e cabal do livro arbítrio, sujeito a erro, mas representando a busca da verdade última de cada um. É um caminho de ruptura, e o corte é sempre um momento de dor, mas só se pode aprender esquecendo uma parte do que se sabe. A recompensa, ou melhor, a essência da atitude herética não é o orgulho, a imodéstia ou o excesso de amor próprio: pelo contrário, é a coragem incómoda de questionar, é reconhecer que nunca se sabe o suficiente e que o dogma do mestre não tem que ser a verdade aprisionante do discípulo. O caminho do deserto é uma etapa, a parte, não o todo do universo, a não ser que soçobremos nele. Como bem sabia Tucídides (citando Péricles?), a felicidade (que não é sinónimo de euforia, de festa, mas sim de fertilidade existencial) atinge-se com a liberdade interior para determinar a via por onde se caminha, o itinerário que, dentre milhentos possíveis, queremos fazer nosso, e a coragem é o mais precioso bordão. * Do grego haíresis, "acto de tomar; escolha; escolha por voto, eleição; função electiva, magistratura; preferência, inclinação, estudo particular de; preferência por uma doutrina;escolha filosófica; escola médica; seita religiosa(...)", José Pedro Machado, in Dicionário etimológico da língua portuguesa, Ed. Livros Horizonte, III volume. --------