Da raridade São raros, muito
Da raridade
São raros, muito raros, os rios que correm de sul para norte, e nenhum foi visto a voltar da foz para a nascente. São raros, muito raros, os amores em que os anos passam, escorrem sem se dar conta, para os aumentar, lhes dar forma, côr, espessura. Esses amores longos, lentos, de uma vida, para uma vida, espraiam-se no corpo, são senhores dele, insinuam-se na pele, correm no sangue, não saem com as lágrimas nem com o suor, nem mesmo com a vontade de os tornar estranhos. Ignoram os dias e fervem-nos ao frio da ausência, subvertem as horas e incendeiam-nas por dentro. Tomam espaço na alma e, com o tempo, com bastante tempo, alimentam uma paixão crescente, como um rio a correr em sentido inverso. Como se fosse possível deixar lenta e seguramente a morte e respirar de novo, passar da superfície da terra para o seu centro em fogo, vestir a força da gravidade e achá-la leve, despir todo o rumor acessório para ficar em silêncio no território essencial daquele momento. Do olhar.
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Publicado em 22 de Abril de 2004