Acerca do amor (no tempo,
Acerca do amor
(no tempo, ou ad augusta per angusta)
O amor é o que sobra do desgaste das coisas menores; é o que o tempo depurou, cimentou e a que deu, algumas lágrimas e muitos sorrisos depois, a consistência máxima. O tempo come as coisas, bem o sabemos, mas antes de as devorar ilumina-as com o brilho esplêndido da verdade. Quase nunca se chega até aqui, trabalho persistente e duro tão contrário aos ventos que sopram: a subida é íngreme e voltar costas uma tentação hedonista e recorrente antes de se saber ler para lá das palavras, antes do instante exacto das juras se tornarem inscritas no sangue, tatuadas no sopro, impressão sulcada e indelével na palma dos dias.
Ao contrário da paixão, esse equívoco oitocentista, fulminante e persistente, entre nós e o mundo, o amor é um resultado do crescimento, não apenas nosso, mas do que de único fomos criando com o outro, no cadinho do olhar, ao longo de todo um caminho. Um dia, como se o deserto tivesse de súbito acabado aos nosso pés, tocamos o ponto supremo que é amarmos no outro também o que nele nos descontenta, sem com isso desistir de nos resgatarmos juntos das incertezas, dos medos, das fragilidades todas.
É aí que se espreita o vislumbre possível de uma realidade maior.
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Publicado em 10 de Julho de 2004