O rosto evidente
Sempre o rosto da amada é transparente,
por ele passa o mundo, passa gente,
vão, por si sós, desde a boca do Verão
aos cabelos do Inverno
as árvores mais claras e as mais fortes.
Sempre o rosto da amada é infinito,
uma escada que sobe como um grito
e nunca pára, suspenso entre o dia e a noite,
no violento espaço que ocupam duas mãos,
todos os frutos, os peixes que navegam com o sol,
os dragões soltos pela Primavera e mesmo o filho
que um dia partiu e volta agora,
todo o corpo mordido
pelas vorazes pulgas da miséria.
Sempre o rosto da amada é solidário
ao tempo e, rico e vário,
vai do vermelho ao rosa,
repousa no azul, salta no mar.
É varado de balas na Bolívia,
bombardeado no Vietname,
feito radiografia no Biafra.
Fiel é no entanto o rosto à vida
e tanto que palpita, ri e chora.
Sempre o rosto da amada é evidente.
Resta o rosto da amada,
o resto é no seu rosto que se sente.
António Rebordão Navarro
Publicado em 1 de Abril de 2006