Há muito, muito tempo, ainda a vida podia ser outra todas as manhãs, aprendi a importância da constância do tempo longo contra o imediatismo romântico, do silêncio em vez do ruído superficial, da percepção das diferenças no lugar do relativismo onde, num vórtice de desimportância e desisteresse, tudo se equivale e nada conta. A vida levou todas as voltas que as circunstâncias encorajaram, os ventos sopraram para novos rumos, mas a bagagem não se perdeu na viagem. É esse o inestimável valor dos clássicos. O que é um «clássico»? Qual a força motriz da sua persistência ao longo dos tempos, através das línguas e das sociedades em constante transformação? O que é que autoriza as batidas da bengala branca do cego Homero na Dublin de Joyce? Eu defino um «clássico», seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma forma significante que nos «lê». Lê-nos mais do que nós o lemos (ouvimos, percepcionamos). Não há nada de paradoxal, muito menos de místico, nesta definição. De cada vez que entramos nele, o clássico questiona-nos. Desafia os recursos da nossa consciência e do nosso intelecto, da mente e do corpo (grande parte da resposta estética primária, e até intelectual, é física). O clássico perguntar-nos-á: «compreendeste?» «re-imaginaste com responsividade?»; «estás preparado para agir sobre as transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência, mais enriquecida, que eu formulei?» George Steiner, in Errata: Revisões de uma vida, trad. Margarida Vale de Gato, ed. Relógio D'Água.