Sento-me então a olhar o rio, os pensamentos formam cardumes que contra a corrente se insurgem mas as águas são inexoráveis; olhando-as, a superfície cintila, propaga-se como se fossem notas de um piano na garupa de um cavalo que se dirige para o mar. O Douro bebe as cores da cidade, sobre elas eu abro o coração em que te encontras, as colinas emolduram as raízes que à terra nos ligam. Para os meus olhos é momento de pausa: as coisas que interrogo não resistem à maré, não dão respostas; perdem-se no mar como tudo o que a memória não reteve. Mas este rio já foi longamente folheado, nele escrevemos o romance que nos deu uma casa, nos cortou o cabelo, nos afastou das rugas, nos entregou o azul (tecido, nuvem, divã, janela...), o voo das artérias, lugar do corpo, portas que amanhecem, espelho onde fazemos fluir a vida. Acordes da guitarra que forja o horizonte, que guia o sinuoso voo das gaivotas e acaricia a pele que rasga atalhos no interior dos sonhos. Estarei vivo enquanto assim me guardar teu coração. E no seu lucilar, esta água imita o fogo que devora sombras e escombros, libertando a asa que no sangue respira. A foz está próxima, mas o horizonte é o teu olhar. No leitor do carro, a guitarra flexível sublinha o que divago; os acordes disparam, encontram-me na trajectória do seu alvo. Egito Gonçalves