É um frio tremendo. A água gela nas torneiras, a solidão cresce com uma unha, uma sombra atrai todas as camisas de silêncio, arde, é uma noite encerrando os perigos da perdição, os ferros agudíssimos do silêncio. É um frio tremendo. Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se, pergunta-se pelo sangue e o sangue não responde, o sangue perde-se aos borbotões na vida, não há caminho, não há regresso, a sereia canta no denso nevoeiro, mas não há esperança, a tempestade é o único lugar, o único lençol, a voz velocíssima entregando-nos sem rendição, entregando-nos. Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz, terrível, cose-nos contra as paredes e os olhos saltam, saltam, é um frio tremendo onde tudo arde, arde antiquíssimo, flecha no coração, solidão descendo o braço, descendo devagar, espraiando-se na terrível superfície do silêncio. Amadeu Baptista