(gentileza de Amélia Pais) Eis-me aqui: a mesa, a ordem das coisas. Nunca a falta de amor foi mais clara. Vem, chacal. Repasto de feras, meu coração aguarda, meu corpo se abre de leste a oeste para o teu solstício. Aqui estou: altar negro esculpido pela delicadeza das ervas. Um dilúvio se incumbe de varrer meus restos. Mas tu ainda brilhas, sempre. Copo de lírio, vermelho vivo aceso na cama, gesto a gesto: Meu peito, tua face, o ouro, o verbo. Acaricio grão a grão a página solar da pele. A casa se abre, a luz, uma fresta. E vejo-te aqui, à minha frente, ao alcance da fala: pausada, hesitante, eterna. Não contemplarei as pegadas, resíduos, fotos tardias. Sofro pela miséria não compartilhada. Por perfeição perdi o que em mim falta e em ti sobeja: Amor, finitude, instantes trançados em musgo, pedras desenhando pedras. Eu: triturado pela engrenagem dos dias. Tu: clareira nascida no momento mais triste da minha vida. Animal ferido, maculei tua face com minha queda. Peço perdão, o perdão das feras, culpadas e cegas. Enquanto o flamingo atinge a glória da lua em sua extinção, Sei das palavras, a linguagem dita no escuro. Murmúrios tramados em nossa caverna: A transpiração de tua flor em cada uma das minhas células. Sei que isso ainda vive, se conserva em um quadrante do tempo. Vazante, amor: a despedida é infinita, nunca se completa. Ouço teus passos, a respiração, teus olhos firmes e entregues. Não há reparação, tu sabes. Mas mesmo assim vens pela noite, navegas meu sangue, meu sêmen, ressurreta. Sim: abaixo de toda a baixeza, estou sujo. Pregado. Entre bandidos, o Senhor me abandonou - ainda vivo. Clamo ao sol: aprofunda esta ferida, esta lepra, escave-a. Cuspa em minha face e pise minhas vértebras. E eu possa cumprir a minha consumação, a tua felicidade. Mãos de cinzas, a cabeça aberta. Peço-te o perdão da estátua, pobre em sua geometria, agônica. Morigerante e certa demais para as formas vivas da luz. A redenção do mal reconhece o mal, um beijo em tua boca - amada, antiga, redescoberta. Uma vez e tudo já foi dito. Uma vez e tudo já foi foi feito. Plenitude, amor. Acredite: apenas isso é o que meus passos errantes sempre quiseram. Louco, translúcido, nu e sem nome, abjeto - rezo. Peço-te um dia a mais sobre a Terra. Tua mão, teu corpo, o deserto. Rodrigo Petronio