Meu amado não é servo nem é rei, é transeunte do cotidiano, que se move onde estou eu. Tem uma cabeça, tensa de sonho e pensamento, que inventa o que haveria de ser e sabe o que lembrar e o que esquecer. Os cabelos encanecem aos ventos crespos, são fios nervosos que perscrutam a dor dos tempos e só se alisam na trégua entre meus dedos. Ele me olha atentamente decifrando a epiderme de secreta pele. Seu olho é azul, castanho, verde ou negro? Só sei que a cor que mora dentro deles é a luz solar em que me aqueço. O rosto grave, que em sorrisos se mascara, eu o cubro de ternuras como as espumas que lhe tocam a barba. A boca tem sabor de menta e de cigarro: é o gosto da palavra que engulo no seu hálito quando entre nós o beijo cala o vão diálogo. As mãos são grandes, ásperas e cálidas, mãos operárias no manejo exato da máquina e do lápis, talvez da arma em tempos mais precários, da flor capazes nas horas amoráveis. Sua voz é morna e calma, em mim ela se grava como em clave de carne o som do amor em brasa. O tronco é arquitetura eficiente para erguer um homem acima do pó e das sarjetas. Nele se agitam os braços na maré presente e correm os pés no encalço de melhores ventos e é destro o sexo em exercício de ancestral silêncio. No corpo inteiro, sangue, músculos e nervos. O resto, poros, pele, pelos. Ele não é esbelto como o cedro ou outra espécie de madeira: é de matéria carnal, com dobras, curvaturas, rugas, franzimentos, e sua altura se flexiona humanamente. Ele tem sombra, pois o sol é dele. Eis seu retrato, ó filhas da cidade: olhai como eu o vejo. Ilka Brunhilde Laurito