Largar
Uma das frases mais profundas que li em toda a minha vida – e que tem sido um autêntico farol para mim – encontra-se na ópera “O Cavaleiro da Rosa”, quando a Marschallin, consciente da caducidade do amor, enuncia os dois lados da experiência amorosa, cada um deles tão inerente ao amor como o outro: “segurar e largar” (“halten und lassen”). A ideia que a personagem de Richard Strauss tenta exprimir é que, na vida – e, por conseguinte, no amor porque ele faz parte da vida – tudo nos escorre por entre os dedos; tudo o que tentamos agarrar desfaz-se nas nossas mãos; tudo se evapora como névoa, como um sonho. Por isso temos de ser leves (“leicht muss man sein”) e temos de amar com mãos leves, para não cairmos na tentação de agarrarmos o que não nos pertence: outrem. E temos de amar com coração leve, para que, no momento em que o amor já não seja possível (ou já não valha a pena – cada história de amor é diferente), consigamos o gesto mais importante de todos na vida: largar.
No entanto, largar é difícil. É talvez a aprendizagem mais dura de todas as que a vida nos obriga a fazer. Quem alguma vez teve a experiência de abdicar, de forma voluntária ou involuntária, de um grande amor, sabe quanto custa esse tremendo “lassen” de que fala a Marschallin. É como nos submetermos à extração de um órgão vital sem anestesia. É uma dor anímica tão forte que contamina o corpo e se torna física. É uma dor por causa da qual algumas pessoas tomam embalagens inteiras de comprimidos de uma só vez ou se atiram de um oitavo andar. É uma dor mais indomável do que o luto normal (que não estou de modo algum a desvalorizar), porque o facto de estar viva a pessoa de quem nos forçámos (ou fomos forçados) a abdicar afia ainda mais a dor sentida. O luto perante a morte de quem amamos é feroz, mas a morte – por muito que o não queiramos – é uma realidade normal que dá uma explicação lógica, ainda que cruel, a uma relação de amor que chega desse modo ao fim. Por isso não é habitual as pessoas reagirem ao luto atirando-se de um oitavo andar. Por outro lado, ninguém sente como normal um amor que é obrigatório terminar estando vivos ambos os amantes. É outro tipo de perda, antes de mais porque nos põe totalmente em causa e nos arrasa a nossa imagem perante nós mesmos.
Pois a esta sensação excruciante de perda está muitas vezes associado um sentimento desanimador de responsabilidade própria: perguntamo-nos se foi o nosso próprio amar – ou a forma como amámos – que esteve na origem da necessidade de largar. Amámos demais? Amámos da maneira errada? Não fomos amados à medida daquilo que entendíamos merecer? Ou fomos profundamente amados num momento e, de repente, sem mais nem menos, deixámos de o ser?
É um pouco esta a situação da Marschallin de “O Cavaleiro da Rosa”, que vive um amor intensamente recíproco com Octavian no 1º ato da ópera, para depois se dar conta de que, de um momento para o outro, sem explicação aparente, ele se apaixonou por Sophie. A situação também é complexa para Octavian, pois ele no fundo ama ambas as mulheres. Ao apaixonar-se por Sophie, não temos a certeza absoluta de que se desapaixonou pela Marschallin: por isso, muitas encenações optam por um final ambíguo, em que ficamos sem saber se o enredo da ópera não continuaria com um reatamento da relação entre Octavian e a Marschallin. Porque se esta tem de enfrentar o processo de largar o seu amante, ele também tem de a largar a ela. Claro que estando apaixonado por Sophie – e com as descargas brutais de dopamina que o estado apaixonado provoca no cérebro – não será Octavian certamente a sentir a dor avassaladora que levaria outro a saltar do oitavo andar.
Quanto à Marschallin, duvido que o passo seguinte dela (depois de, no final da ópera, ter caído o pano) seja engolir várias embalagens de comprimidos (e não escrevo isto só porque no século XVIII não havia Valium 10). O distinto poeta que escreveu o libreto de “O Cavaleiro da Rosa” – Hugo von Hofmannsthal – teve o cuidado de construir uma personagem imbuída de uma capacidade especial de reflexão. A própria necessidade de “largar” é uma tomada de consciência dela.
Ela tem bem a noção do que é um amor à altura das suas expectativas, à altura do seu valor, à altura da qualidade que ela imprime ao ato de amar. E percebe que, não estando reunidas as condições necessárias para que o amor faça sentido, de facto é preferível largar.
Em paralelo com a sua extraordinária capacidade de verbalizar os seus sentimentos da forma mais delicada e subtil, a Marschallin de Strauss e Hofmannsthal consegue igualmente um registo notável de simplicidade aforismática. Uma das suas frases mais desarmantes é “cada coisa tem o seu tempo” (“jedes Ding hat seine Zeit”). Chegado o momento de largar, é preciso fazê-lo. Aos que o não fazem – diz-nos esta filósofa – a vida aplica o seu castigo. “E Deus”, diz ela, “não tem pena deles”.
Frederico Lourenço
Publicado em 8 de Outubro de 2014