Eu queria que tu perdesses a beleza e ficasses, não a estátua mutilada que liberta e amplia o êxtase, mas a transfiguração do teu próprio esplendor, a tua metempsicose em criatura usual, integrada na turba. Eu queria que a tua beleza morresse e que, como um mar de naufrágio, sobrevivesse o teu corpo deserto de tua graça sem vestígio. Os homens perderiam a lembrança de seu desejo e na lembrança dos homens se apagaria a tua irradiação e ante os olhos dos homens se fecharia para sempre o sulco que teus gestos cadenciados abrem no ar e a inconstância dos homens, insensível a teu desastre, esqueceria a tua primavera. Eu, só eu, ficaria contigo, eu só, com a alegria de guardar intacta a tua imagem. Tudo que para minha percepção nasceu de ti permaneceria integral e imutável: a rua continuaria sendo o friso que tu povoaste de efígies harmoniosas nascidas de cada passo da tua marcha; a noite continuaria sendo o veludo morno com que teu beijo a prolongou até à origem de meu sonho; e diante de mim a felicidade continuaria, vigilante e eterna, no fundo de teus olhos de antigamente já apagados para os outros que os olharam. Eu, só eu, ficaria contigo e seria o senhor fabuloso de um tesouro desaparecido que a cobiça não percebe, e seria a voz secreta, a alma imperecível de uma cidade morta, e seria o testemunho revelador de uma legenda esquecida. Eu, só eu, ficaria contigo ... E, de trazer-te em mim, eu seria a fôrma ignorada de uma escultura perdida de cuja perfeição os homens se recordam com nostalgia. Felipe d´ Oliveira