Dantes, num tempo ainda recente, a televisão foi o meio ideal do analfabeto secundário - essa figura conceptualmente identificada e caracterizada pelo poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger, num discurso de 1985, intitulado Elogio do Analfabetismo. O objecto do elogio de Enzensberger foi o "analfabetismo primário", que é a origem de toda a literatura, na medida em que desenvolveu os recursos da transmissão oral. Neste sentido, a literatura é precisamente uma arte de analfabetos. Mas, a partir da época da industrialização e, com grande pujança, desde que triunfou a regra da massificação, surgiu na cena social a figura a que Enzensberger dá o nome de "analfabeto secundário", que não descende da linhagem do primeiro. Este novo tipo de analfabetismo não desenvolve nenhuma arte, nem tem potencialidades antropológicas: o analfabeto secundário desconhece-se a si mesmo enquanto tal e considera-se informado. Sabe muito bem decifrar os códigos escritos e as linguagens visuais com que o mundo moderno o interpela. Não sabe é que há muito mais mundo para além daquele que foi configurado à sua medida. E quando, por acaso ou acidente, se vê confrontado com o que não conhece reage como um filisteu, para o qual só existe a categoria da utilidade e o universo objectivo e enumerável dos bens. Ao serviço do analfabeto secundário está hoje uma grande parte do mundo impresso. Por isso, o destino mais comum das livrarias foi o de se renderem também aos bons ofícios dessa figura universal. Nelas, resplandece hoje este analfabetismo, que alimenta uma grossa fatia da indústria do livro.
Elogio do Analfabetismo
Publicado em 19 de Março de 2021