• Conscientemente escrevo e, consciente,
    medito o meu destino.
    No declive do tempo os anos correm,
    deslizam como a água, até que um dia
    um possível leitor pega num livro
    e lê,
    lê displicentemente,
    por mero acaso, sem saber porquê.
    Lê, e sorri.
    Sorri da construção do verso que destoa
    no seu diferente ouvido;
    sorri dos termos que o poeta usou
    onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
    e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
    do latejar antigo
    daquele corpo imóvel, exhumado
    da vala do poema.
    Na História Natural dos sentimentos
    tudo se transformou.
    O amor tem outras falas,
    a dor outras arestas,
    a esperança outros disfarces,
    a raiva outros esgares.
    Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
    exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
    é tudo quanto fica,
    é tudo quanto resta
    de um ser que entre outros seres
    vagueou sobre a Terra.

    António Gedeão