É uma abordagem em que nos apercebemos da falência da memória, e que aquilo que nós somos não engloba aquilo que nós fomos. A percepção é fragmentária, subjectiva, a maior parte das vezes alucinatória, daquilo que nos torna aquilo que nós somos em determinados momentos. Por exemplo, a revisitação dos temas políticos da minha primeira juventude, em que me vejo a mim mesma com 15 anos a ler, por exemplo, o príncipe [anarquista russo] Kropotkin, em paixão não por aquilo que ele diz, mas pelo espírito nobre que ele é, pela extraordinária generosidade que ele mostra. A diferença, por exemplo, entre ler Kropotkin e ler Marx e Engels, que nos subjugam pela força da sua dialéctica, da sua argumentação de tal maneira férrea em A Ideologia Alemã que se impõe com uma evidência numa altura em que não estamos apetrechados para desconfiar das evidências, porque desconfiar das evidências é uma coisa que se vai aprendendo ao longo da vida, que o que é evidente não é normalmente verdadeiro, não é algo que se possa constituir como a nossa realidade interna de uma forma sólida. São fogachos, coisas que apanhamos. Curiosamente, é uma actividade estética. A beleza daquelas ideias subjuga-nos como ver um quadro belíssimo. Este tipo de revisitação não é uma memória. Eu não gosto muito do passado, não é uma coisa que me apeteça revisitar.
Luísa Costa Gomes, em entrevista a Isabel Lucas