¶ 31 de Dezembro de 2019
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de dezembro 2019
¶ 31 de Dezembro de 2019
O Livro do Sapateiro
Iremos procurar a razão da giesta
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo
Pedro Tamen
¶ 28 de Dezembro de 2019
Do ciclo os mistérios do ofício
Não me importa o exército das odes,
Nem o jogo torneado da elegia.
Nos versos, tudo é fora de propósito.
Não como entre as pessoas, - me dizia.
Saibam vocês, o verso, é do monturo
Que eles se alenta, sem vexame disso,
Como um dente-de-leão pegado ao muro,
Anserina, bardana, erva-de-lixo.
Grito de zanga, um travo de alcatrão,
Um bolor misterioso que esverdinha...
E eis o verso, furor e mansidão,
Para alegria de vocês e minha.
Anna Akhmátova, trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman
¶ 27 de Dezembro de 2019
Agora pesa
Virá o dia em que o jovem deus será um homem,
sem sofrimento, com o morto sorriso do homem
que compreendeu. Também o sol se move longínquo
avermelhando as praias. Virá o dia em que o deus
já não saberá onde eram as praias de outrora.
Acorda-se uma manhã em que o Verão morreu,
e nos olhos tumultuam ainda esplendores
como ontem e no ouvido os fragores do sol
feito sangue. A cor do mundo mudou.
A montanha já não toca o céu; as nuvens
já não se amontoam como frutos; na água
já não transparece um seixo. O corpo dum homem
curva-se pensativo onde um deus respirava.
O grande sol acabou, e o cheiro da terra
e a rua livre, colorida de gente
que ignorava a morte. Não se morre de Verão.
Se alguém desaparecia, havia o jovem deus
que vivia por todos e ignorava a morte.
Nele a tristeza era uma sombra de nuvens.
O seu passo pasmava a terra.
Agora pesa
o cansaço sobre todos os membros do homem,
sem sofrimento: o calmo cansaço da madrugada
que abre um dia de chuva. As praias sombreadas
não conhecem o jovem a quem outrora bastava
que as olhasse. Nem o mar do ar revive
na respiração. Cerram-se os lábios do homem
resignados, para sorrir frente à terra.
Cesare Pavese
¶ 26 de Dezembro de 2019
Devagar
Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas -
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 25 de Dezembro de 2019
Em carne viva
Cruz, rosa
Dos ventos sem direcção que não seja o centro. Coluna
Sustentada pelos braços como um amigo que chega. Rosa
De orvalho e sangue para o corpo trepassado de sede. Árvore
Que bebe do homem. Árvore
Em silêncio onde escutamos a palavra
Em carne viva. Verbo
Tão inteiro que se fez espelho
Daniel Faria
¶ 24 de Dezembro de 2019
Dentro do amor
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
Herberto Helder
¶ 22 de Dezembro de 2019
Traveling Light
I'm traveling light
It's au revoir
My once so bright
My fallen star
I'm running late
They'll close the bar
I used to play
One mean guitar
I guess I'm just
Somebody who
Has given up
On the me and you
I'm not alone
I've met a few
Traveling light like
We used to do
Goodnight goodnight
My fallen star
I guess you're right
You always are
I know you're right
About the blues
You live some life
You'd never choose
I'm just a fool
A dreamer who
Forgot to dream
Of the me and you
I'm not alone
I've met a few
Traveling light like
We used to do
Traveling light
It's au revoir
My once so bright
My fallen star
I'm running late
They'll close the bar
I used to play
One mean...
Leonard Cohen
¶ 21 de Dezembro de 2019
Good & bad news
The good news is that I'm seldom surprised. The bad news is that I'm seldom surprised.
Michael Pollan
¶ 19 de Dezembro de 2019
O último comboio para Valongo
Seguem todos com um lugar na cabeça.
Um lugar pode ser um filho por nascer
uma mãe moribunda, uma taberna que
se abre sórdida ao nosso desejo em flor.
Seguem todos com o peso tremendo
dos lugares contra os vidros do comboio.
Lá fora a noite mostra-lhes os dentes indecifráveis
e sorri sobre o corpo morno da locomotiva.
Eu sigo dentro. Fecho os olhos diante
dos rostos que procuro arredar de mim.
Na solidão dos vagões abro os olhos para fora:
Não há caminhos, não avisto luz nas veredas
sob os montes há apenas as vozes dos lugares
e o peso que o amor faz sobre os trilhos.
Bruno M. Silva
¶ 18 de Dezembro de 2019
Solstício de Inverno
O Solstício de inverno é um fenómeno astronómico que ocorre quando o Sol atinge a maior distância angular em relação ao plano que passa pela linha do Equador e acontece todos os anos ao dia 21 ou 22 de dezembro.
Este ano, o solstício de inverno ocorrerá no dia 22 de dezembro de 2019, às 4h. Esta data marca o início do inverno em Portugal e em todo o hemisfério norte, e do verão no hemisfério sul.
É o dia mais curto do ano e, consequentemente, tem a noite mais longa. A partir desta data, a duração do dia começa a crescer. Por isso, na antiguidade, o solstício de inverno simbolizava a vitória da luz sobre a escuridão.
A palavra solstício vem do latim solstitius, que é a junção de sol e sistere. Assim, o significado de solstício é "ponto em que o Sol não se move".
¶ 18 de Dezembro de 2019
nos meus pensamentos sempre
nos meus pensamentos sempre
as palavras lutam duas a duas pela verdade
palavras se metem dentro
de outras palavras querendo ideias
sou uma caixa de vários lados
com vários cantos
com duas sombras
uma escura que nasce da clara
outra clara que nasce da escura
a luz cintila e a sombra dorme
a sombra estatela-se e a luz ergue-se
nasce cada palavra dentro de outra palavra
Fernando Lemos
¶ 17 de Dezembro de 2019
Sorrateiro
sorrateiro o animal se afasta
deixa suas marcas
decalcadas
no chão que piso
e minha graça
esconde os cheiros
do animal caçado.
sorrateiro o animal se esconde
deixa suas marcas
impressas
nas paredes que me abrigam
e minha graça
transcende os cheiros
do animal que se destaca.
Pedro Du Bois
¶ 15 de Dezembro de 2019
Habitation
Marriage is not
a house or even a tent
it is before that, and colder:
the edge of the forest, the edge
of the desert
the unpainted stairs
at the back where we squat
outside, eating popcorn
the edge of the receding glacier
where painfully and with wonder
at having survived even
this far
we are learning to make fire
Margaret Atwood
¶ 12 de Dezembro de 2019
Reflexo
De uma luz alheia
és tanto o reflexo
que dir-se-ia tua.
Reflectes:
teu fulgor é tua veste,
não teu corpo
baço de sangue preso,
frémito uníssono com a noite.
José Bento
¶ 11 de Dezembro de 2019
Águia
Voar, pensava então,
como se num bater de asas se elevasse o
mundo,
como se a primavera rasgasse para sempre
a nuvem escura
e sobre os meses não caíssem as penas,
como se as minhas garras sustentassem o
cordeiro ou a estrela
e mais para cima o meu bico cansado
levasse o teu coração.
Joaquim Agostinho Baptista
¶ 9 de Dezembro de 2019
Povo Adormecido
Há chuvas
que o meu povo não canta
Há chuvas
que o meu povo não ri
Perdeu a alma
na parede alta do macaréu
Fala calado
e canta magoado
Vinga-se no tambor
na palma e no caju
mas o ritmo não sai
Dobra-se sob o sikó
como o guerreiro vergado
cala o sofrimento no peito
O meu povo
chora no canto
canta no choro
e fala na garganta do bombolon
Grei silêncio
quebrado
nas gargalhadas de Kussilintra
em quedas de água
moldando pedras
esfriando corpos
esculpidos
no corpo do bissilão
Tony Tcheka
¶ 7 de Dezembro de 2019
Este homem
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo
Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra
António Ramos Rosa
¶ 6 de Dezembro de 2019
À Espera dos Bárbaros
O que esperamos nós em multidão no Forum?
Os Bárbaros, que chegam hoje.
Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?
É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.
Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.
E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?
Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.
E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?
Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.
Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.
Konstantínos Kaváfis
¶ 1 de Dezembro de 2019
Segredos
após a sedução
degreda o segredo
em palavras
que não deviam ser ditas
desditas
dizem os anjos
sobrevoando os destroços
a reconstrução se faz lenta
alenta
o tanto perdido
em novas paredes
metálicas
onde os sons
permanecem calados
Pedro Du Bois