Arquivo de junho 2023
¶ 30 de Junho de 2023
Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.
Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.
E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.
Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.
Cecília Meireles
¶ 29 de Junho de 2023

¶ 29 de Junho de 2023
E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
Cecília Meireles
¶ 28 de Junho de 2023

¶ 28 de Junho de 2023
É impróprio ser famoso
Pois não é isso que eleva.
E não vale a pena ter arquivos
Nem perder tempo com manuscritos velhos.O caminho da criação é a entrega total
E não fazer barulho ou ter sucesso.
Infelizmente, nada significa
Como uma alegoria andar de boca em boca.Mas é preciso viver sem pretensões,
Viver de tal modo que no fim de contas
Venha até nós um amor ideal
E ouçamos o apelo dos anos que hão-de vir.
O que é preciso rever
É o destino, não antigos papéis;
Lugares e capítulos de uma vida inteira
Anotar ou emendar.
E mergulhar no anonimato,
E ocultar nele os nossos passos,
Como foge a paisagem na neblina
Em plena escuridão.
Que outros nesse rasto vivo
Seguirão o teu caminho passo a passo,
Mas tu próprio não deves distinguir
A derrota da vitória.
E não deves por um só instante
Recuar ou trair o que tu és,
Mas estar vivo, e só vivo,
E só vivo – até ao fim.
Boris Pasternak, trad. Manuel de Seabra
¶ 26 de Junho de 2023
Mas tu nunca vinhas com a noite –
E eu sentada com casaco de estrelas.
… Quando batiam à minha porta
Era o meu próprio coração.
Agora pendurado em todas as ombreiras,
Também na tua porta;
Entre touros rosa-de-fogo a extinguir-se
No castanho da grinalda.
Tingi-te o céu cor de amora
Com o sangue do meu coração.
Mas tu nunca vinhas com a noite
… E eu de pé com sapatos dourados.
Else Lasker-Schüler
¶ 25 de Junho de 2023
Uma manhã de Junho quando ainda é cedo para acordar
mas demasiado tarde para voltar a pegar no sono.
Embrenho-me pelo arvoredo repleto de recordações
e elas seguem-me com os seus olhares.
Autênticos camaleões, elas não se mostram,
diluem-se literalmente no cenário.
E embora o gorjeio dos pássaros seja ensurdecedor,
estão tão perto de mim que ouço como respiram.
Tomas Tranströmer
¶ 24 de Junho de 2023

¶ 24 de Junho de 2023
Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado
Ana Hatherly
¶ 23 de Junho de 2023
Não éramos nada. Éramos apátridas. Estávamos entre dois mundos como o nosso barco, navegando para trás e para a frente entre dois continentes. Um dos mundos tinha-nos rejeitado; o outro não nos quisera quando tanto precisávamos da sua ajuda.
Margot Friedlander, antiga refugiada judia
¶ 23 de Junho de 2023
Adicione a trezentos gramas de imagens poéticas
dois decilitros de lirismo puro
e bata até obter uma pasta homogénea.
Àparte misture em partes iguais
estilo pessoal, vivência, ironia e moral de uso caseiro,
aromatize com essências de cultura greco-latina
e ponha passas de amargura
amêndoas de fatalismo
cerejas de filosofia e pinhões de retórica
tudo seco e picado miúdo.
Ligue bem as duas misturas de modo
A que os sabores fiquem identificáveis
E sejam fáceis a qualquer digestão.
Leve a cozinhar em editor brando,
sirva morno em primeira edição.
Deve acompanhar-se este manjar
com um clarete seco de promoção pessoal à temperatura ambiente
ou com um licor de oportunidade política muito gelado.
Manuel Mengo
¶ 22 de Junho de 2023

¶ 22 de Junho de 2023
Quando nasci, trazia de origem
um farol que despejava luz a jorros
sobre o que quer que fosse,
mormente sobre as dobras
pérfidas da noite.
Mas, por estranho que pareça,
também os faróis estão sujeitos
às leis da erosão,
e o meu farol deliu-se. Hoje não é
mais do que um triste farolim de bicicleta
que apenas me alumia dois palmos de noite.
Amanhã estará reduzido
a uma simples lanterna de bolso
com que mal poderei reconhecer
o lugar onde estou.
Até que um dia será, está bom de ver,
o mais fiável cúmplice da noite –
– da noite que devia dissipar,
e não fundir-se nela.
Defeito de fabrico.
Mas a garantia caducou e o fabricante
nega-se a ressarcir-me do escuro.
A. M. Pires Cabral
¶ 21 de Junho de 2023

¶ 21 de Junho de 2023
O solstício de verão de 2023 ocorre a 21 de junho, pelas 15h57 em Portugal, marcando oficialmente o início do verão. No hemisfério norte, o dia do solstício do verão é o dia mais longo do ano e é o momento em que o Sol atinge a maior declinação em latitude, medida a partir da linha do Equador.
¶ 20 de Junho de 2023
Nas laudas que aí ficam muito me esforcei,
senhores, por dar caça aos adjectivos
que tanto vos molestam.
Mas nem tudo correu bem.
Houve uns quantos que se barricaram
e ergueram cartazes e gritaram com ira
uma palavra de ordem:
– O sal da poesia somos nós!
Achei graça –
dizerem que são eles o sal da poesia,
quando nem sequer o colorau.
Mas, enfim, enterneceu-me
tanto arreganho, tanto apego
às tetas da musa –
e não tive coragem para os expulsar.
Espero que não pesem, senhores, demasiado
na melindrosa balança de vossas senhorias.
A. M. Pires Cabral
¶ 19 de Junho de 2023
A transparência não é possível de atingir. Transparência significa ver as coisas claramente, sem distorções de filtros, e isso é impossível seja em que situação for. O que vemos será uma função dos quadros de referência que preenchem a nossa consciência, e todos serão angulares. Não existe nenhum que seja puro e directo. A transparência não é uma conquista possível. É apenas um argumento retórico.
Stanley Fish
¶ 18 de Junho de 2023

¶ 18 de Junho de 2023
Voa, meu sonho, voa sobre as planícies geladas,
Voa sobre as árvores mortas do Inverno,
Paira sobre a lonjura das belas noites de estrelas,
Nunca pares, continua a voar cada vez mais.
Arde, minha saudade, como chama eterna,
Arde na escuridão onde tudo se apagou e foi há muito.
Eterna é esta saudade, é a vida, é a ousadia,
E o fogo que salta sobre o véu de cinzas.
Compreende que para quem nada conseguiu,
E junto à praia nunca repousou,
Não há morte para alta fogueira que ardeu,
Não há medida para terras azuis da sua saudade.
O meu coração vive de saudade em saudade.
Sempre para desconhecida costa se volta –
A saudade de um poeta não obedece às leis do espaço,
A terra dos sonhos não tem fronteiras.
Bertel Gripenberg, trad. José Agostinho Baptista
¶ 16 de Junho de 2023
Modelei sonhos de púrpura
quando os dias eram habitados
com gestos de espuma
e palavras vestidas de delírio
E quando os dias se ausentaram
e os gestos se perderam no vazio
eu me absolvi
apesar de tanta dor e tanta perda
António Sem
¶ 14 de Junho de 2023
Procuro amor no deserto das manhãs
nascidas das florestas do sono
onde o teu génio ausente
teima em dormir entre os meus braços
Reencontro-me para melhor me perder
nesse naufrágio de imagens passadas
que preenchem as páginas vazias dos dias
Perco-me nesses olhos feitos sombra
nesse sorriso de vento agreste
onde os longes são permanentes
António Sem
¶ 13 de Junho de 2023

¶ 13 de Junho de 2023
Hoje comprei um livro de Raul de Carvalho
por um euro, o que considero um escândalo!
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.
António Barahona
¶ 11 de Junho de 2023
Eu ontem vi-te…
Andava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno de mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse
fulgor assim.
Ângelo de Lima
¶ 9 de Junho de 2023

¶ 9 de Junho de 2023
Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo,
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.
Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?
E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?
Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
Ana Luísa Amaral
¶ 8 de Junho de 2023

¶ 8 de Junho de 2023
A partir de certa altura somos todos pais cujos filhos saíram de casa, quer tenhamos filhos, como o teu pai, quer não, como eu. A nossa função acabou, as nossas expectativas escapam-nos das mãos, já não fazemos parte do jogo. Agora ou estamos pacificados ou furiosos. Eu prefiro a pacificação, mas isso sou eu.
Pedro Mexia, in Suécia
¶ 7 de Junho de 2023
Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
Herberto Helder
¶ 6 de Junho de 2023

¶ 6 de Junho de 2023
dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
Carlos Edmundo de Ory
¶ 5 de Junho de 2023
Com o consentimento da neve
caminharei devagar.
Alguém haverá à espera junto do fogo
e eu, que estarei cega pelo frio,
farei paragens breves,
sacudirei o guarda-chuva e começarei de novo.
O único segredo é não sentir-se
imensamente cheio de verdades.
Não aceitar nunca os convites
que o nevoeiro
sugere ao fazer ninho com os seus disfarces
de paisagem feliz, de grandes sonhos.
Alguém haverá que diga, perdeu-se,
alguém sairá a procurar-me,
e levará o calor de uma garrafa
onde poderei mandar-te esta mensagem.
——-
Ana Merino, trad. Joaquim Manuel Magalhães
¶ 4 de Junho de 2023
Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
Amalia Bautista
¶ 3 de Junho de 2023

¶ 3 de Junho de 2023
Este caminho
Ninguém já o percorre,
Salvo o crepúsculo.
De que árvore florida
Chega? Não sei.
Mas é seu perfume.
Bashô Matsuo
¶ 1 de Junho de 2023
Nós sentimo-nos sempre mais jovens do que realmente somos. Trago dentro de mim próprio os meus rostos anteriores, tal como a árvore contém os seus anéis. A soma deles sou eu. O espelho apenas vê o meu rosto mais recente, enquanto que eu conheço todos os meus rostos anteriores.