Da transitoriedade dos afectos (ou
Da transitoriedade dos afectos
(ou a teoria do lounge dos aeroportos)
Li há dias esta frase, caracterizadora da época contemporânea, ao menos no mundo dito ocidental, onde a liberdade individual se traduz, entre outras atitudes mais construtivas, na faculdade de cada cidadão (ou cidadã, obviamente - valha-nos isso!) poder desfazer-se (leia-se "mandar às malvas" com total aisance) toda e qualquer relação afectiva, tenha ou não carácter institucional, duração respeitável, ou mesmo consaguinidade de permeio); o individualismo que acompanhou o que se convencionou chamar de pós-modernidade (expressão sociológica correspondente à economia globalizada, enquanto modo de produção dominante, ou Estado de direito democrático, sob o ponto de vista jurídico-político) inclui esta prerrogativa, aliás perfeitamente compreensível, de viver os afectos como situações finitas e descartáveis mal soe a respectiva hora e antes mesmo que se tente, com um mínimo de empenho, evitar o inerente dobre de finados.
As relações afectivas dão muito trabalho a manter, cansam e descompensam muitas vezes - e, quando se trata de uma falha estrutural, a ruptura não é mais do que puro bom senso em acção, quando não instinto de sobrevivência; semper fidelis pode ser um motto puramente egoísta, querendo dizer da permanência do vencedor sobre o vencido, desde que tudo permaneça igual. Eu sei que o vocabulário jurídico fica mal aos olhos dos habitantes de outros saberes quando o discurso passa por temas como este, mas não resisto: há quem use e abuse da cláusula rebus sic standibus (desde que as coisas permaneçam inalteradas) para com isso prolongar uma relação num quadro de pacto leonino., ignorando a respiração cada vez mais sufocada do outro. Aí, sim, a mera observação dos factos recomenda a ruptura, e impõe uma transitoriedade, mesmo que forçada, ao afecto que se desenvolveu num ambiente viciado de desigualdade permanente e perversão irremediável.
A consideração (no sentido de fazer do outro uma estrela consigo) é um factor indispensável para ultrapassar a transitoriedade dos afectos, para os sustentar no tempo e espraiar cada vez mais.
Em suma, imaginemos que cada pessoa é um passageiro em itinerância: num determinado aeroporto, chega e aguarda pela chamada do seu novo voo. Essa estadia no lounge permite-lhe interagir com um certo número de outros passageiros em situação idêntica - alguns esperam o mesmo voo, outros aguardam diferente ligação. Durante o tempo de permanência no lounge, estabelecem-se relações; algumas prolongam-se, outras esgotam-se no momento em que um dos passageiros é chamado para o seu novo destino. A verdadeira consideração recíproca é o elemento que fará a diferença.
Ana Roque
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Publicado em 12 de Julho de 2003